O Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a discutir na semana passada a constitucionalidade da lei cearense 15.299/2013, que regulamentou os espetáculos de vaquejada no estado. A ação contra o evento foi protocolada pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, em 2013. O procurador sustenta que a prática está relacionada a maus-tratos a animais.
Os professores de Direito Ambiental que fazem parte da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil soltaram uma nota pedindo para que os ministros do STF julguem como inconstitucional a Lei Cearense da Vaquejada. Segundo eles, considerar a vaquejada, a farra do boi ou a rinha de galo como meras manifestações culturais que mereçam ser preservadas é um paradigma de pensamento próprio daquele que despreza seus semelhantes em situação vulnerável. “Se práticas “culturais” não evoluíssem, o Coliseu ainda estaria funcionando; os moradores de Esparta ainda atirariam crianças com deficiência física ou mental do alto do monte Taigeto, por não serem aptas a integrar seu exército”, diz.
O ministro Celso de Mello pediu vista, mas já adiantou voto e entendeu que a lei que regulamentou a vaquejada no Ceará é inconstitucional por tratar-se de maus-tratos contra os animais, crime tipificado na legislação ambiental.
O placar do julgamento, iniciado em agosto do ano passado, está empatado em 4 votos a favor da validade da norma e 4 pela inconstitucionalidade. Não há data para retomada do julgamento. “O fim das vaquejadas também é um sinal de evolução e o brasileiro, que é criativo, certamente encontrará outros meios para se divertir”, concluiu a nota.
Confira a nota na íntegra
Excelentíssimos Senhores Ministros do Colendo Supremo Tribunal Federal,
Os professores de Direito Ambiental que esta carta subscrevem, integrantes da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil, extremamente preocupados com os rumos do julgamento em curso da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4983, por meio da qual o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, questiona a validade da Lei 15.299/2013, do Estado do Ceará, vêm à presença de Vv.Ee. apresentar as seguintes ponderações:
01. Ninguém ignora que haja quem considere maltratar um animal uma forma válida de diversão, uma atividade cultural ou desportiva. Da mesma forma, há também quem ache que subjugar uma mulher é uma conquista do homem, que espancar uma criança é um direito dos pais e que encarcerar um idoso num quarto é uma solução prática para os dias atuais.
02. Considerar vaquejada, farra do boi ou rinha de galo meras manifestações culturais que mereçam ser preservadas é um paradigma de pensamento próprio daquele que despreza seus semelhantes em situação vulnerável. Se práticas “culturais” não evoluíssem, o Coliseu ainda estaria funcionando; os moradores de Esparta ainda atirariam crianças com deficiência física ou mental do alto do monte Taigeto, por não serem aptas a integrar seu exército; não teria havido a abolição da escravidão, em razão dos graves prejuízos à economia rural brasileira do Século XIX; as touradas não teriam sido proibidas em Barcelona desde 2010 (apenas para citar alguns exemplos)!
03. O Ministério Público Federal ajuizou uma ação contra uma lei do Ceará que regulamenta as “vaquejadas”, modalidade deprimente de espetáculo altamente lucrativo e que hoje não tem absolutamente nenhuma relação com a labuta diária dos vaqueiros tradicionais – esta sim uma prática que deve integrar o patrimônio cultural brasileiro. Conforme esclarece o MPF na peça inicial, a vaquejada consiste em espetáculo no qual são formadas “duplas de competidores que correm a galopes, cercando o boi em fuga. O objetivo é conduzir o animal até uma área marcada com cal e, estando ali, agarrá-lo pelo rabo, torcendo-o para, na queda, posicioná-lo com as quatro patas para cima”.
04. Para o pesar dos que atuam na área ambiental, forma-se uma tendência junto ao STF segundo a qual a vaquejada seria uma manifestação cultural que deve ser garantida. Em outras palavras, a lei cearense nada teria de inconstitucional.
05. Não podemos crer que o Supremo Tribunal Federal permita a consumação do retorno à idade média em nosso país. Apaga-se a previsão constitucional do art. 225, § 1º, inciso VII, que reconhece que os animais são seres sencientes (i.e., sentem dor e prazer) e, por isso, proíbe sejam eles submetidos a crueldade.
06. Daí será um passo para se permitir a agressão a qualquer outro ser vivo em situação de vulnerabilidade. A vaquejada, sem dúvida, se assemelha à farra do boi, às rinhas de galo, aos animais confinados em circos, às brigas de cachorros, etc. Atente-se que vários Estados brasileiros já aprovaram legislação que proíbe o uso de animais em circos (Goiás, Alagoas, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo) e diversos municípios já fizeram o mesmo.
07. Por banalizar a dor e o sofrimento em prol do lucro, a vaquejada é prática que não merece amparo constitucional. A imagem de quem agride uma mulher, uma criança, uma pessoa com deficiência, um trabalhador humilde (ou daquele que testemunha essa agressão e não faz nada para impedi-lo) não é tão diferente daquela do sujeito que se diverte em ver a dor nos olhos de um animal acuado.
08. Não ignoramos que haja quem entenda que referida prática distancia-se de outras práticas congêneres, como a Farra do Boi ou a Rinha de Galo. Para os defensores da vaquejada, nos outros casos há sempre a morte cruel e lenta dos animais, enquanto nesta os animais correm por natureza e instinto e são “apenas” derrubados quando puxados pelo rabo em terreno coberto de areia.
09. Em busca de argumentos que lhes sejam favoráveis, afirmam também os adeptos da vaquejada que barbárie maior é a criação em regime especial de contenção de bezerros, para posterior matança para satisfação do apetite humano por carne de animais.
10. O argumento, porém, é cínico e não socorre os defensores da vaquejada. Não há dúvida que é preciso combater também práticas de abate que provocam sofrimento e medo nos animais, mas também não resta nenhuma dúvida que a vaquejada envolve a instrumentalização dos animais para finalidade de entretenimento e, como tal, deve ser questionada, tal como devemos questionar a legitimidade moral e jurídica de circos com animais, dentre outras atividades.
11. Na vaquejada a crueldade é ínsita, inerente à prática, pois envolve necessariamente o tracionamento da cauda do animal e sua consequente derrubada ao solo. A cauda é extensão natural da coluna vertebral, região rica em vasos sanguíneos e terminações nervosas e, portanto, extremamente vulnerável a graves e permanentes lesões.
12. Além disto, mesmo que eventualmente caia na areia, as lesões ortopédicas são muito comuns, haja vista a aceleração, a velocidade da queda e o peso do animal, o que, em física, se denomina de quantidade de movimento.
13. Por analogia, imagine-se não um touro, mas um ser humano (que tem um peso menor e menor velocidade) correndo e, em sequência, sendo puxado pelo braço e derrubado desavisadamente ao solo. Ninguém negaria que submetermos alguém a este gesto violento seria um ato odioso, ilícito, condenável.
14. Embora haja evidentes diferenças entre humanos e animais, e a intenção aqui não é a equiparação absoluta entre eles, devemos tentar aplicar a regra de ouro no sentido sempre de nos colocarmos no lugar do outro, especialmente quando o outro está em condição de vulnerabilidade. Animais são outros. Estão no âmbito de nossa comunidade moral na qualidade de seres sensíveis à dor e ao sofrimento. Não vemos, portanto, justificativa para tal prática.
15. Ainda que fossem tidas como “culturais”, práticas que causem dor e sofrimento aos animais (como no caso da vaquejada em que se tem o deslocamento da coluna vertebral dos bois puxados pelo rabo e a quebra das patas quando caem) são absolutamente vedadas pelo art. 225, § 1º, inciso VII da Constituição Federal de 1988. E, atente-se, esta é uma regra (e não princípio) que estabelece expressamente que o Estado deve coibir as práticas que submetam os animais a crueldade. Não há que se sopesar tal regra com a proteção das manifestações culturais (princípio), pois nelas está imanente o limite de não incidirem na vedação da crueldade. Só é legítima a manifestação na medida em que não é cruel. Permitir a vaquejada é permitir a continuidade de uma cultura de violência, opressão e dor.
16. A Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil e os seus professores associados manifestam profunda preocupação com o risco de grave retrocesso jurisprudencial que poderá implicar em banalização da crueldade. Em Minas Gerais, na Justiça Federal, há teses em curso propondo a exclusão de ilicitude em razão de rinha de pássaros. Em prevalecendo a votação pela constitucionalidade da lei cearense, serão fortalecidas tais argumentações, como a de que rinha é também aspecto cultural.
17. A população brasileira, em sua imensa maioria, não aceita a legitimação de atividades lucrativas que têm por alicerce a violência e a covardia. Podemos nos divertir sem o uso de animais. Ainda temos muito a evoluir, inclusive no que tange ao tratamento dispensado aos animais abatidos para nos servir de alimento. O fim das vaquejadas também é um sinal de evolução e o brasileiro, que é criativo, certamente encontrará outros meios para se divertir.
São Paulo, 7 de junho de 2016
Fonte e foto da capa : ANDA