Após ter levantado a possibilidade de um “novo AI-5” (ato institucional decretado pela ditadura militar em 1968 dando ao governo mais poderes autoritários) no país, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) enfrentará tentativa de puni-lo na Câmara dos Deputados e no Supremo Tribunal Federal (STF).
No caso do STF, porém, a apresentação de uma notícia-crime pela oposição não poderá prosperar sem um aval do procurador-geral da República, Augusto Aras, já que apenas ele pode pedir a abertura de um processo criminal contra um deputado. Aras tomou posse no final de setembro, após ser indicado para o cargo pelo presidente Jair Bolsonaro, pai de Eduardo Bolsonaro.
Já no caso da Câmara dos Deputados, caberá ao Conselho de Ética da Casa avaliar a abertura de um processo de cassação contra o parlamentar.
A fala de Eduardo ocorreu em entrevista ao canal da jornalista Leda Nagle no YouTube, após uma pergunta sobre os protestos que estão ocorrendo no Chile. Ele disse que um “novo AI-5” era uma possibilidade em caso de “radicalização da esquerda” no Brasil. Depois da forte reação negativa e de ser repreendido até pelo presidente, o deputado disse ter sido mal interpretado ao programa “Brasil Urgente”, da Band, na tarde desta quinta-feira.
“Eu peço desculpas a quem porventura tenha entendido que estou estudando o retorno do AI-5 ou achando que o governo, de alguma maneira, estaria estudando qualquer medida nesse sentido. Essa possibilidade não existe. Agora, muito disso é uma interpretação deturpada do que eu falei”, afirmou ao apresentador do programa, José Luiz Datena.
“Eu talvez tenha sido infeliz em falar no AI-5, porque não existe qualquer possibilidade de retorno do AI-5, mas, nesse cenário (de manifestações como as do Chile), o governo tem que tomar as rédeas da situação”, disse ainda.
Após o pedido de desculpas, no entanto, a oposição manteve a intenção de levá-lo ao Conselho Ética.
“Ele que se explique e peça desculpas publicamente no Conselho de Ética. Isso é um escárnio, mexer com a Democracia brasileira, (mostra) um espírito de ditador”, disse o deputado Ivan Valente (PSOL-SP).
“O repúdio (na Câmara) foi generalizado. Ele está muito isolado”, destacou ainda.
Mais cedo, a declaração de Eduardo sobre a possibilidade de um novo AI-5 gerou reação de partidos de esquerda, centro e direita e até mesmo uma nota de repúdio da Executiva Nacional da sua sigla, o PSL, que está divida no apoio ao governo. O deputado hoje lidera o partido na Câmara após uma ferrenha briga interna em que seu pai interveio o apoiando.
Já o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse em nota oficial que a declaração sobre o AI-5 era “repugnante” e que a “apologia reiterada a instrumentos da ditadura é passível de punição pelas ferramentas que detêm as instituições democráticas brasileiras”.
Por que a declaração pode levar à cassação?
O professor de direito Constitucional da FGV em São Paulo Roberto Dias explicou à BBC News Brasil que a Constituição garante a Eduardo Bolsonaro não ser punido “por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. É a chamada “imunidade parlamentar”, prevista no artigo 53.
“Essa garantia (imunidade) não é uma proteção da pessoa do parlamentar, mas da própria função parlamentar, para que o Parlamento possa exercer sua função com independência, para que as ideias possam circular livremente, já que os parlamentares representam as pessoas”, explica Dias.
No entanto, destaca o professor, a própria Constituição também estabelece no artigo 55 que o parlamentar pode perder seu mandato por “quebra de decoro” se houver “abuso das prerrogativas (direitos)” garantidos aos congressistas.
É exatamente esse o argumento da oposição para pedir a cassação do filho do presidente. Segundo o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), líder da oposição na Câmara, a representação será apresentada no Conselho de Ética semana que vem.
“Ele está usando a imunidade parlamentar para defender o fim da democracia e da Constituição que ele jurou defender. É uma declaração grave e inaceitável, que fere o decoro parlamentar”, disse Molon.
Após a apresentação da representação contra Eduardo, o conselho avaliará se o processo deve ser aberto. Caso isso ocorra, haverá prazo para defesa do parlamentar. Depois da análise do Conselho, ele só perderá o mandato se a maioria simples do plenário da Câmara aprovar (ao menos 257 votos). No caso do ex-deputado Eduardo Cunha, que era presidente da Casa, o processo se arrastou por meses, até sua cassação ser aprovada em setembro de 2016.
Para o jurista Miguel Reale Jr., um dos autores do pedido de impeachment que levou à queda da ex-presidente Dilma Rousseff, a fala de Eduardo Bolsonaro justifica um processo contra ele no Conselho de Ética da Câmara.
“Sem dúvida nenhuma é caso de processo de cassação do deputado. Ele fala na tripla condição de deputado, líder do partido do presidente, e filho do presidente, ele está ameaçando (com uma ação antidemocrática)”, criticou à BBC News Brasil.
O Ato Institucional nº 5 (AI-5) foi editado em 1968, no período mais duro da ditadura militar, e resultou no fechamento imediato e por tempo indeterminado do Congresso Nacional e das assembleias legislativas estaduais, além de suspender as garantias constitucionais.
O ato permitia cassar direitos políticos de forma sumária e suspendia o habeas corpus (recurso que serva para cessar abusos como prisões ilegais). O período que se seguiu ao AI-5 foi marcado por intensificação da censura e repressão política, com torturas e assassinatos de opositores do regime.
O que pode ocorrer no STF?
PSOL, PT, PSB, PDT, PCdoB e Rede protocolaram na noite desta quinta-feira uma notícia-crime no STF pedindo que Eduardo Bolsonaro seja processado e condenado por “incitar publicamente ato criminoso”, crime previsto no Código Penal.
No entanto, segundo integrantes do Ministério Público Federal consultados pela BBC News Brasil, o caso teria que ser remetido para análise do procurador-geral da República, Augusto Aras.
Na semana passada, por exemplo, o ministro do STF Celso de Mello arquivou uma notícia-crime movida pelo deputado Paulo Pimenta (PT-RS) contra procuradores da força-tarefa da Lava Jato no Paraná.
Ao rejeitar o pedido do petista, o ministro destacou que “o Poder Judiciário não dispõe de competência para ordenar, para induzir ou, até mesmo, para estimular o oferecimento de acusações penais pelo Ministério Público”.
“O monopólio da titularidade da ação penal pública pertence ao Ministério Público, que age, nessa condição, com exclusividade, em nome do Estado”, afirmou ainda Celso de Mello.
O PSOL poderia ter apresentado a notícia-crime à PGR, mas não considera Augusto Aras “independente” do governo.
“A PGR poderia ser um caminho, mas com essa PGR agora fica difícil. É um novo engavetador”, criticou Ivan Valente, em referência ao ex-procurador-geral Geraldo Brindeiro (1995-2003), que ficou conhecido como engavetador-geral da República.
“Vamos direto ao Supremo. Ato Institucional nº 5 significa também cassação de juízes, fechamento do Judiciário, fechamento do Congresso. Então, acho que o Supremo deve se manifestar”, acrescentou o líder do PSOL.
De acordo com Roberto Dias, professor da FGV, se uma denúncia contra Eduardo Bolsonaro chegar de fato ao STF, primeiro os ministros vão avaliar se a fala do deputado sobre o AI-5 teve relação com o exercício do seu mandato, para decidir se a imunidade parlamentar se aplica no caso.
“Se a fala for feita fora do exercício da função, o parlamentar pode ser punido civil e criminalmente. Mas, a princípio, o deputado dando entrevista sobre questões do país, questões institucionais, ele está protegido”, destaca.
No entanto, acredita Dias, mesmo que o Supremo entenda que o deputado estava protegido pela imunidade parlamentar, os ministros podem querer avaliar se essa proteção pode ser flexibilizada quando a declaração do deputado vai contra o próprio Congresso.
“Ele está usando a imunidade parlamentar para defender algo que destrói o próprio Parlamento. Seria uma discussão complexa. Não lembro de o Supremo já ter se deparado com essa questão, então não sei que caminho adotaria”, ressaltou.
Fonte: BBC