Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara? Muitas vezes escrevi sobre o verso de Drummond. Não consigo esquecê-lo agora, navegando no bairro Triângulo, em Porto Velho, tomado pelo Rio Madeira, que já subiu 19 metros acima do nível normal. Milhares de desabrigados, milhões perdidos, estradas bloqueadas, centenas de cabeças de gado submersas, uma tragédia que passa em branco pelo radar dos políticos e intelectuais que conferem grande peso simbólico à região.
No momento em que escrevo, nem a presidente Dilma Rousseff nem seus adversários resolveram chegar por aqui para ver o que se passa e aprender um pouco com a crise. Mas essa vontade de não saber se estende também aos próprios empresários e habitantes da Amazônia, se olhamos para as duas grandes usinas construídas aqui: Jirau e Santo Antônio.
Não é sensato culpá-las pela enchente. Mas hoje podemos afirmar que os relatórios de impacto ambiental que as licenciaram ignoraram, por questões econômicas, a realidade mais ampla da Bacia do Madeira. Deixaram de lado o Rio Beni, que vem da Bolívia, e o Rio Madre de Dios, que vem do Peru – ambos concorrem para a formação do Madeira. Ignoraram, na verdade, algo bem mais consistente: a Cordilheira dos Andes. Essa escolha impediu que se preparasse melhor para uma grande cheia que conjuga um degelo maior nos Andes e grandes chuvas nas cabeceiras do Beni e do Madre de Dios.
O valor simbólico da Amazônia tem muito que ver com plantas e bichos. Os seres humanos que vivem aqui são coadjuvantes nas fantasias salvacionistas. Mesmo assim, se abstrairmos o bicho-homem, os outros também estão sofrendo. É triste ver o gado se afogando sem que se tenha condições de salvá-lo. Os milhares de jacarés do Lago do Cuniã foram arrastados do seu hábitat e lançados nas águas do Madeira. Eram explorados, com autorização do Ibama, por um frigorífico que também se afogou.
O que restava de um monumento da engenharia nacional, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, foi por água abaixo. Os poucos quilômetros de trilhos, as velhas locomotivas no pátio do museu, peças históricas, tudo isso naufragou. Obra em que morreram milhares, construída entre 1907 e 1912, a Mad Maria estava desaparecendo há muito tempo, até que afundou no Mad Madeira.
Os sucessivos governos de Rondônia foram incapazes de reconhecer o valor cultural da Madeira-Mamoré, algo que seria altamente recompensado com a criação de um polo turístico. Os 7 km de trilhos que restaram poderiam sustentar um passeio pela mata. Apesar de inúmeras tentativas, jamais se conseguiu reaproveitá-los.
É muito difícil um Estado como Rondônia se interessar pela própria História. Grande parte dos seus moradores não se identifica com ela, principalmente os mais ricos. De 40 governadores do Estado, apenas um foi enterrado por aqui, observa o historiador Antônio Ocampo.
Naveguei no Rio Madeira algumas vezes. Na década de 1980, com a ajuda do Sindicato dos Mergulhadores, publiquei na capa da Folha de S.Paulo algumas fotos espantosas: esqueletos em escafandros. É que durante a exploração do ouro os mergulhadores eram às vezes assassinados. Subiam com o ouro e, quando mergulhavam de novo, os sócios cortavam-lhes o oxigênio. Houve mortes também por excesso de trabalho, condições precárias.
Hoje não se procura mais ouro no Madeira. A riqueza vem da energia de suas águas represadas. As duas usinas, Jirau e Santo Antônio, podem produzir 6.450 MW, mas têm grande impacto no meio ambiente. É questão internacional, porque envolve também a Bolívia. E deveria ser reavaliada pelos governos. É preciso incorporar os Andes, o Beni, o Madre de Dios, enfim, fazer um estudo mais amplo para garantir que funcionem sem grandes danos.
Um técnico explicou-me um fenômeno chamado curva de remanso. Segundo ele, a água vem freando como se a informação da existência de uma barragem fosse transmitida rio acima. E isso provoca ondas.
No auge da crise, a Usina de Jirau acusou a de Santo Antônio de não ter avaliado bem os dados sobre volume e vazão e ter-se atrasado demais nas medidas de emergência. Não se pode simplesmente acreditar na versão de uma contra a outra. A verdade é que o bairro Triângulo, por onde já caminhei nos trilhos da Madeira-Mamoré, virou um rio com dois metros de profundidade.
Antes as famílias levavam cadeiras para os trilhos e conversavam nos fins de tarde. Hoje esse bairro – com lojas, salões de beleza, academias e agência de turismo – se tornou inviável. Algumas casas ficaram totalmente submersas. O Triângulo fica na margem oposta à da Usina de Santo Antônio e é agora uma área de altíssimo risco.
Como transplantar todo um bairro? A que custo? Um senador de Rondônia conseguiu em Brasília R$ 3 milhões para uma pequena cidade, seu reduto eleitoral, que não foi atingida pelas cheias. Até o momento em que deixei a cidade, Porto Velho havia conseguido uma promessa de R$ 600 mil e contabilizava um prejuízo de R$ 320 milhões.
Não acredito nunca no rigor dessas estimativas de prejuízo. Meus olhos dizem que foram altos, como devem ter sido altos para o Acre com os bloqueios na BR-364 e a inundação causada pelo próprio Rio Acre.
Foi um ano excepcional? Tudo indica que sim. Apesar do insucesso na Usina de Fukushima, os japoneses sempre se preparam para o pior tsunami. A Amazônia deveria preparar-se para a pior das cheias. Enquanto esquecemos a Amazônia real em nossos bares, a Amazônia se esquece de si própria e ainda destrói progressivamente sua memória. Mad Amazônia.
O boto-cor-de-rosa, que, segundo a lenda, seduz e engravida virgens nas margens do Madeira, também está com a sua reprodução ameaçada pela nova configuração do rio. Mas se o boto sumir, ainda continuará seduzindo e engravidando, porque, nesse caso, é só uma questão de acreditar.
Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo em 14/03/2014