O principal instrumento que permitiu aos países desenvolvidos ampliar de maneira significativa a reciclagem de resíduos sólidos, desde o início do milênio, é a responsabilidade ampliada do produtor (Extended Producer Responsibility, na expressão em inglês). Relatório recém-publicado pela agência ambiental europeia mostra que a quantidade de lixo incinerada ou mandada para aterros reduziu e que a reciclagem, no continente, passou de 23% a 35% dos resíduos, entre 2001 e 2010, um aumento muito considerável.
Mais que isso: a Alemanha vem conseguindo descasar a produção de riqueza da geração de lixo. Relatório do Bifa Environmental Institute mostra que, entre 2000 e 2008 (portanto, antes da crise), o PIB, em termos reais, cresceu quase dez por cento, e o volume de lixo caiu nada menos que 15%. A intensidade em lixo da vida econômica, medida decisiva para avaliar a qualidade da relação que uma sociedade mantém com seus recursos ecossistêmicos, declina mais de 22%.
Maior riqueza e menos lixo: como isso é possível?
A responsabilidade ampliada do produtor ajuda a responder essa pergunta. O conceito, que hoje se encontra no âmago das políticas europeias e é adotado também em vários Estados norte-americanos, foi usado pela primeira vez em 1990 pelo pesquisador Thomas Lindhqvist num relatório para o Ministério do Meio Ambiente da Suécia. Vale a pena citar sua própria definição: “A responsabilidade ampliada do produtor é uma estratégia de proteção ambiental para alcançar o objetivo de reduzir o impacto ambiental de um produto tornando seu fabricante responsável pelo conjunto do ciclo de vida do produto e, especialmente, por sua coleta, sua reciclagem e sua disposição final”.
É claro que, para que isso ocorra, o consumidor tem que fazer uma separação correta, os comerciantes devem possuir dispositivos onde alguns resíduos serão colocados, e o governo precisa organizar a coleta nos domicílios. Mas é ilusão imaginar que o avanço europeu recente na redução do lixo e na elevação da taxa de reciclagem seja apenas devido ao nível educacional da população e à eficiência das prefeituras.
O fundamental, e que em última análise responde pelos bons resultados europeus, é a responsabilidade do fabricante pelo conjunto do ciclo de vida do produto. No caso francês, por exemplo, já existem 19 cadeias produtivas em que vigora um ecoimposto que contribui para financiar os sistemas municipais de coleta e reciclagem. Quem produz o detrito paga antecipadamente (e cobra de seu consumidor, é claro) por dar-lhe a destinação correta. Acaba de ser aprovada uma lei segundo a qual quem compra uma cadeira paga 0,20 euros por sua reciclagem futura e 4 euros para que um colchão não acabe na rua ou num rio. É uma prática contrária à que marcou o crescimento econômico do século 20.
Na prática corrente até aqui, a vida econômica se organiza de maneira linear, a partir do procedimento “pega-produz-consome-joga”. Os produtos vão do berço à sepultura e, para fazer novos produtos, recorre-se novamente a matérias-primas virgens, que alimentam processos produtivos, cujos resultados são consumidos e, em seguida, jogados fora. O problema é que não existe esse “fora”.
A escassez e o encarecimento das matérias-primas, as possibilidades cada vez mais limitadas de encontrar espaços para aterros e os custos exorbitantes da incineração abrem caminho a que os agentes econômicos passem a tratar como fonte de riqueza os materiais até então destinados ao lixo. Relatório recente da Fundação Macarthur fala em economia circular, em oposição à economia linear do “pega-produz-consome-joga”: a economia circular é aquela em que parte crescente dos resíduos é usada como insumo na fabricação de novos produtos.
Numa economia circular, a própria concepção do produto, seu design, já incorpora e amplia as possibilidades de recuperação e reutilização dos materiais nele contidos. Isso revoluciona, por exemplo, a maneira como são fabricados bens eletrônicos, cujas ligas devem prever recuperação e manuseio fácil, sem o que o destino de materiais, muitas vezes raros e preciosos, acabará sendo o lixo e, pior, o lixo tóxico, já que a separação dos componentes é muito difícil. Existindo responsabilidade ampliada do produtor, o fabricante exigirá de seus engenheiros um produto que, contrariamente ao que ocorre hoje, facilite o trabalho da reciclagem e, preferencialmente, o reuso da maior parte daquilo que o integra.
O trabalho da Fundação Macarthur mostra que, na Grã-Bretanha, a substituição de garrafas descartáveis de cerveja pela velha prática do depósito de vasilhame permitiria, por exemplo, a redução de 20% do custo total do produto. Onze Estados norte-americanos já adotaram leis que obrigam a volta dessa prática. O consumo de cerveja “one-way”, por exemplo, pode ser mais confortável, mas, se o seu custo real estiver incorporado ao produto, caberá ao consumidor saber se deseja, de fato, pagar por ele.
São exemplos importantes e que oferecem lições valiosas, neste momento em que, no Brasil, se estabelecem os acordos setoriais que vão dar vida para a nossa Política Nacional de Resíduos Sólidos. Acabar com os lixões, melhorar a situação dos catadores e ampliar seu papel no interior da política são objetivos decisivos. Mas a capacidade de a PNRS diminuir a produção de lixo e ampliar a reciclagem depende, antes de tudo, de mecanismos que estimulem os fabricantes a usar menos materiais, menos energia e propiciar à sociedade maiores oportunidades de transformar lixo em riqueza. É fundamental então que fique claramente esclarecida sua responsabilidade pelos resíduos ligados aos produtos que colocam no mercado.
* Ricardo Abramovay é professor titular da FEA e do IRI-USP, pesquisador do CNPq e da Fapesp, e autor deMuito Além da Economia Verde, lançado na Rio+20 pela Editora Planeta Sustentável.
** Publicado originalmente no site Prêmio Empreendedor Social/ Folha de S. Paulo.
(Prêmio Empreendedor Social/ Folha de S. Paulo)