O ministro Rogerio Schietti, do Superior Tribunal da Justiça (STJ), acredita que a Corte não deu a importância devida ao julgamento dos militares acusados de envolvimento no atentado do Riocentro, em 1981. Para o magistrado, a rejeição à reabertura do processo imposta pela maioria dos ministros foi motivo de “desalento pelo rumo dado ao caso”.
“Como do atentado não resultou a morte ou ferimento de nenhum civil, talvez não tenhamos dado ao fato o relevo que ele merecia. Se consumado o intuito criminoso dos militares que organizaram e executaram o plano, haveria uma mortandade sem igual em nossa história, contra milhares de pessoas que comemoravam o Dia do Trabalho se divertindo em um show no Riocentro”, afirmou o ministro Rogerio Schietti, que foi o relator do caso no STJ, em entrevista ao blog.
O episódio, ocorrido no bairro de Jacarepaguá (RJ), foi uma tentativa fracassada de ataque a bomba durante um show comemorativo do Dia do Trabalhador, que reuniu mais de 20 mil pessoas no Centro de Convenções do Riocentro.
Segundo o Ministério Público Federal (MPF), que solicitou a reabertura do processo ao STJ, a ação praticada por militares de uma ala mais radical buscava a criação de um clima de medo na sociedade brasileira em relação a movimentos de esquerda para justificar a volta do recrudescimento da ditadura, que já estava em processo de abertura política.
“O atentado foi idealizado como parte de um planejamento estratégico de setores importantes do Governo Militar de então, e teria o propósito de imputar a responsabilidade das mortes a grupos de esquerda mais radicais. Com isso, o processo de reabertura, em curso naquele momento, sofreria um revés. Foi um ato covarde e cruel, que felizmente não se consumou”, explica o ministro.
O pedido do MPF era para que o caso fosse caracterizado como crime contra a humanidade, sob o qual não se aplica as regras de prescrição. O entendimento da maioria dos ministros do STJ sobre o caso, contudo, foi que ele não pode ser enquadrado nessa categoria porque o MPF “não apontou violação de dispositivo legal que pudesse caracterizar lesa-humanidade”, um dos requisitos que caracterizam esse tipo de delito.
No recurso, o MPF sustentou que atos como tentativa de homicídio por parte de agentes do Estado contra a população civil, como o transporte de bombas e a supressão fraudulenta de provas, configuram no direito internacional ilícitos criminais caracterizados como lesa-humanidade.
O julgamento teve início no dia 28 de agosto e foi adiado por um pedido de vista (quando um magistrado solicita mais tempo para analisar as peças) do ministro Reynaldo Soares, também do STJ. A Terceira Seção da Corte retomou a análise do caso na última quarta-feira (25) e rejeitou a reabertura do caso por 5 votos a 2.
Apesar da maioria ter optado pela não reabertura do processo, ministros já haviam avaliado o blog que o julgamento faria um contraponto ao “bolsolnarismo“, por ampliar a discussão e contestar ideias defendidas no atual governo Jair Bolsonaro a respeito da ditadura militar (1964-1985).
De acordo com o ministro Rogerio Schietti, a reabertura do processo “não representaria ideia de vingança ou perseguição descabida a agentes do Estado envolvidos no atentado ao Riocentro”.
“O Estado brasileiro não deseja deixar sem a devida apuração e sanção eventuais responsáveis por atos de extrema gravidade, praticados em um contexto que, por todas as normas internacionais, tratados e doutrina já escritos sobre o tema, se caracterizam como crimes contra a humanidade”, afirma Schietti.
O magistrado acredita que o caso ainda será analisado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). “Tenho esperança de que, no momento que entenderem oportuno, os eminentes ministros do STF analisem todos os temas que são objeto do [recurso], com o tirocínio jurídico que lhes adorna a mente e orienta suas decisões.”
Um relatório da inteligência americana que está no Arquivo Nacional no Rio de Janeiro mostra que, um mês depois do atentado do Riocentro, os Estados Unidos já tinham indícios de que o ataque tinha sido organizado pelos próprios militares brasileiros, e não por grupos de esquerda, como o governo militar alegou na época. Um dos objetivos do atentado seria atrasar a abertura política (veja no vídeo abaixo).
Um mês após bomba do Riocentro, EUA já sabiam origem do ataque
Leia abaixo os principais pontos da entrevista do ministro Rogerio Schietti ao blog:
Blog – Com a conclusão do julgamento do processo do Riocentro pelo STJ, qual a sua impressão diante da perda de oportunidade de o Judiciário vir a se manifestar frente a um episódio tão emblemático para a redemocratização do país?
Rogerio Schietti – Não deixei de externar, com o máximo respeito aos eminentes colegas que formaram a maioria, meu desalento pelo rumo dado ao caso. Como do atentado não resultou a morte ou ferimento de nenhum civil, talvez não tenhamos dado ao fato o relevo que ele merecia. Se consumado o intuito criminoso dos militares que organizaram e executaram o plano, haveria uma mortandade sem igual em nossa história, contra milhares de pessoas que comemoravam o Dia do Trabalho se divertindo em um show no Riocentro. O atentado foi idealizado como parte de um planejamento estratégico de setores importantes do governo militar de então, e teria o propósito de imputar a responsabilidade das mortes a grupos de esquerda mais radicais. Com isso, o processo de reabertura, em curso naquele momento, sofreria um revés. Foi um ato covarde e cruel, que felizmente não se consumou.
Blog – O senhor acredita que o atual momento pelo qual o país passa, de questionamento das instituições democráticas, possa ter interferido na decisão?
Rogerio Schietti – Não acredito que juízes da mais elevada capacidade moral e intelectual possam ter se sentido de algum modo pressionados a votar nesta ou naquela direção, embora não se deva desconsiderar que avaliações consequencialistas são legitimamente incorporadas no momento de decidir qualquer processo.
Blog – Na sua avaliação, haveria espaço para o prosseguimento desse debate na Corte Constitucional do Brasil?
Rogerio Schietti – Haverá, sim, pois existe Recurso Extraordinário interposto para o Supremo Tribunal Federal, que chegou a ser consultado sobre a necessidade de ali julgar aquele recurso antes do STJ julgar o Recurso Especial. Recebemos o sinal verde e por isso demos seguimento à impugnação. Tenho esperança de que, no momento que entenderem oportuno, os eminentes ministros do STF analisem todos os temas que são objeto do RE, com o tirocínio jurídico que lhes adorna a mente e orienta suas decisões.
Blog – O senhor gostaria de acrescentar algum pensamento sobre o julgamento do caso no Riocentro no STJ?
Rogerio Schietti – O prosseguimento da ação penal, perante a Justiça Federal, não representaria qualquer ideia de vingança ou perseguição descabida a agentes do Estado envolvidos no atentado ao Riocentro. Significaria tão somente que o Estado brasileiro não deseja deixar sem a devida apuração e sanção eventuais responsáveis por atos de extrema gravidade, praticados em um contexto que, por todas as normas internacionais, tratados e doutrina já escritos sobre o tema, se caracterizam como crimes contra a humanidade. […] De outro modo, como seriam punidas as atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial e nos genocídios ocorridos posteriormente (antiga Iugoslávia, Ruanda), que deram origem, aliás, a julgamentos por Tribunais criados para esse fim específico? Não podemos, com o respeito aos que pensam o contrário, condicionar a punição de tão graves crimes à existência de previsão específica nos Códigos Penais dos países onde ocorrem tais violações aos direitos mais basilares das pessoas, sobretudo a vida. E é por isso que, por sua excepcional gravidade, esses crimes não são alcançados pela prescrição, mesmo que nada digam as leis do país sobre eles. […]
Fonte: G1