Sonia Racy
Feminista e mestre em filosofia política
questiona quem tem direito a voz na sociedade
O livro O Que É Lugar de Fala? foi lançado pela pequena editora Letramento, mas atraiu atenção de grandes selos. A autora, porém, pretende manter essa obra – e a coleção que organizou – onde está. Djamila Ribeiro explicou que só vai considerar ir a outras editoras em projetos futuros.
Feminista negra, mestre em filosofia política e ex-secretária-adjunta de Direitos Humanos de São Paulo – na gestão de Fernando Haddad –, a autora tem se destacado como uma das vozes mais atuantes, hoje em dia, em debates sobre questões de gênero e racismo. a entrevista à repórter Paula Reverbel, ela aborda o tema de seu livro: quem tem direito a voz em uma sociedade ainda racista e machista?
Pode falar um pouco sobre como é a sua experiência de ser mulher negra no Brasil?
Infelizmente o Brasil naturaliza muito a violência. Muitas vezes, quando a gente fala da nossa rotina, as pessoas acham que é exagero. Só vão se chocar quando acontece algo com a filha, por exemplo, do Bruno Gagliasso. Mas falta o entendimento de que, quando a gente fala de racismo, é sobretudo do racismo estrutural. Ligar a televisão e não enxergar pessoas negras… Por que na USP a maioria dos professores são brancos e as mulheres que limpam os banheiros são negras? Por que não tem pessoas negras, enfim, nos espaços de poder?
Pode dar um exemplo de racismo estrutural que sofre?
Se eu vou pegar um voo internacional, as pessoas olham com cara estranha, ou vêm falar em inglês comigo, porque acham que eu sou estrangeira. E eu tiro onda porque, se eu for também todo dia me estressar com isso, eu não vivo. Tenho uma filha pra criar, precisar estar bem. Se estou no exterior e encontro brasileiros, eles começam a perguntar: “Veio fazer o que aqui nos EUA, você veio sambar? Você veio fazer show?” Então, se eu encontro brasileiro sem noção fora do Brasil, eu geralmente falo “no portuguese”, pra evitar o estresse. Passei uma semana de outubro na Noruega e andava muito mais tranquilamente num país nórdico do que no meu próprio país.
As pessoas lá veem com mais naturalidade?
Muito mais. E olha que eu tive reuniões no Parlamento, com membros do partido do governo. Era vista como uma pessoa que foi pra uma reunião. Aqui no Brasil é sempre um olhar de estranhamento. No ano passado, quando eu era secretária de Direitos Humanos, já fui barrada em reuniões.
Você foi barrada?
Barrada em recepções. Uma vez eu falei: “Olha, eu sou a Djamila, tenho uma reunião com tal procurador”. E a recepcionista disse: “Mas agora o procurador tem uma reunião com a secretária-adjunta dos Direitos Humanos”. Falei: “Então, sou eu”. Coisas do tipo que acontecem no Brasil. Ser negra no Brasil é ser estrangeira no próprio país. Porque a gente nunca se sente pertencida e as pessoas sequer se questionam sobre isso, sabe? De tão naturalizado que está. As pessoas brancas precisam sair desse lugar do conforto e começar a olhar o Brasil real.
Como você explica o que é o ‘lugar de fala’?
É pensar, sobretudo, quem foi autorizado a falar numa sociedade racista, machista. É só a gente começar a olhar as próprias produções bibliográficas dos nossos cursos, é só a gente começar a olhar quem são, numa redação, jornalistas. A gente não parte dos mesmos lugares de direito à fala. As pessoas gostam de dizer que tem que dialogar, mas como dialogar se um está no topo e o outro está na base? O outro sequer é ouvido, né? Então a gente falar de lugares de fala é pensar as hierarquias que estão postas na sociedade que autoriza que determinados sujeitos falem, ao passo que outros ficam invisíveis.
Essa discussão causa incômodo em algumas pessoas?
Homens brancos são muito incomodados com esse debate. Alguns dizem “Ah, então agora a gente não pode mais falar”, como se nós tivéssemos algum poder de impedir que eles falem. O máximo que pode acontecer é eu bloquear esse sujeito na minha página de Facebook, mas ele vai continuar sendo o chefe de redação, ele vai continuar sendo o escritor publicado, ele vai continuar sendo o professor. A gente quer coexistir dentro desse espaço e ele quer continuar sendo voz única.
No debate sobre cotas nas universidades, muitos alunos de escola privada criticaram a reserva de metade das vagas para egressos de escola pública. Tem interesse próprio aí?
Sim, de uma pessoa pensar: “Está tirando a minha vaga.” A pessoa já assume que é dela quando a vaga é pra todos. Mas quem eram as pessoas que conseguiam acessar esse espaço? Aquele sujeito branco que não questiona que ele faz parte de um lugar do privilégio e acaba naturalizando o privilégio. Ele não acha que aquilo foi construído à base da opressão de outros grupos. Então, quando ele não entende isso, vai falar: “Como assim, tá tirando a minha vaga!” Se entendesse o lugar social que ele ocupa, ele não ia naturalizar como dele.
Recentemente, a Tais Araújo e o Bruno Gagliasso reclamaram de racismo, mas sofreram reações diferentes. Como vê isso?
É porque existe uma compaixão maior quando são as pessoas brancas falando. Quando vítimas da opressão reclamam, as pessoas tratam como mimimi ou como uma coisa chata. E a Taís Araújo só falou uma realidade. A gente vive num país em que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado. As mães negras têm medo quando seus filhos vão pra rua. Eu tenho dois irmãos homens, minha mãe dizia: “Não saia sem documento, não saia malvestido.” Porque ela sabe o peso que é. No caso do Bruno e da Giovanna Ewbank, um casal branco, todo mundo se compadece, né? Não é culpa deles, evidentemente. São pessoas que estão indo buscar informação, são pessoas que admitiram a ignorância em relação à questão racial, que só foram sentir quando eles tiveram uma filha negra. Acho incrível o que estão fazendo, contribuiu muito para o debate. Pessoas brancas têm que contribuir para o combate racial. Mas percebemos o quanto a sociedade é hostil em relação às pessoas negras.
A Tais se referia a um tipo de racismo menos evidente. Causa mais indignação?
Sim, porque quando a filha do Gagliasso foi xingada, você tem um fato concreto, não tem nem como dizer se foi racismo ou não. Já no caso da pessoa que atravessa a rua quando vê um menino negro (exemplo dado pela Tais), ela não quer se confrontar com aquela verdade desagradável. Então prefere não falar sobre aquilo ou atacar a Taís. Uma autora que eu uso muito no meu livro, a Grada Kilomba, diz que as pessoas reprimem pra não ter que lidar com verdades desagradáveis.
Tem-se apontado muitos casos de racismo ou machismo vindo de pessoas que não se davam conta de suas atitudes…
É importante a gente ter humildade de entender que todo mundo vai reproduzir a opressão, a gente é criada pra reproduzir. Eu tive que aprender sobre a questão trans, já falei muita besteira. Passa pela humildade da pessoa de reconhecer que não sabe. Para conhecer a realidade das pessoas travesti eu fui ler sobre, eu fui em palestra sobre. Pedi desculpas e fui aprendendo. O problema é que as pessoas não querem ter esforço. As pessoas brancas têm que ler sobre a questão racial, dar espaço na mídia pra que essas pessoas falem. Existem várias formas de você contribuir. Na questão do machismo é a mesma coisa, os homens podem ler o que as feministas vêm produzindo. Quem não se informa diz: “Ah, mas eu acho que é.” A gente tem que combater o racismo, o machismo e o achismo. O achar é uma irresponsabilidade, é antiético inclusive, é extremamente irresponsável socialmente. Você achar que o Brasil não é um país machista não retira o fato de que a cada cinco minutos uma mulher é agredida pelo companheiro.
Você é acadêmica. O que a academia não deu conta de fazer em relação a essas discussões?
É importante sair da bolha da academia porque ela é um espaço de privilégios no Brasil. Eu quero falar de modo que a minha mãe entenda o que eu tô falando, que minhas tias entendam o que eu tô falando. E isso não significa que elas não entendem porque elas não têm capacidade. Elas não tiveram oportunidade de dominar uma linguagem que eu tive oportunidade de dominar. A gente não pode esquecer o compromisso com a sociedade. As feministas negras têm um compromisso muito grande com a linguagem. A Angela Davis é doutora em Sorbonne, mas se você pegar um livro dela, a linguagem é extremamente acessível. A academia critica os acadêmicos que fazem esse esforço de serem acessíveis. Eu sou acadêmica, mas consigo transitar em vários lugares. Ao mesmo tempo que estou na academia eu falo num canal de televisão aberta, vou à periferia participar de formação, vou a palestra e fico conversando com CEOs de grandes empresas. É importante saber transitar em todos os espaços e não criar um nicho.
Acadêmicos veem com maus olhos o seu jeito acessível de falar de feminismo?
Muito. Muitas teóricas femininas também. Pelo fato de não ficar confinada numa biblioteca o dia inteiro. Eu poderia falar filosofês se eu quisesse. Falo filosofês em evento da filosofia, em que todo mundo domina aquela linguagem. Se eu vou falar num evento com pessoas de vários lugares, aquelas pessoas não têm obrigação nenhuma de dominar a linguagem filosófica. Se você tem um compromisso social você vai se preocupar com a questão da linguagem.
Às vezes há queixas quanto ao tom usado por quem reclama de racismo ou machismo. O que pensa disso?
Colocam os movimentos como sendo agressivos, violentos. Muitas vezes existe certo exagero, eu sou crítica a algumas estratégias da militância, mas não posso dizer como essas pessoas devem reivindicar. Mulheres brancas ganham 30% menos que homens brancos, mulheres negras ganham até 50% menos. Elas vão continuar sendo oprimidas e você tá bravinho porque ela falou pra você calar a boca. O que é violento? Alguém mandar você calar a boca ou você, por pertencer a um grupo, estar sujeito a uma série de violências? Como é que eu vou chegar pra uma travesti e falar “não grite”? O Brasil é o país onde mais se matam travestis e transexuais no mundo.
Fonte: Estadão