Está nas mãos de Michel Temer a decisão pela sanção ou veto da Medida Provisória 759/2016, que altera diversas leis relacionadas à regularização fundiária em áreas urbanas e rurais. A MP chegou a ser elogiada pelo presidente em seu primeiro pronunciamento após a crise da JBS, em maio, e é pouco provável que ele vete o texto. Durante uma audiência pública no Senado para discutir o assunto, o senador Romero Jucá (PMDB-RR), relator da MP, defendeu a proposta indicando que ela atendia a uma dívida histórica do Estado brasileiro com milhares de famílias que migraram para a Amazônia nas décadas de 1970 e 1980, com a promessa governamental de receberem títulos das terras que ocupassem.
É fato que tal promessa ocorreu e que muitas dessas famílias nunca receberam o esperado título. No entanto, o argumento do senador em defesa da MP 759 falha por dois motivos. Primeiro, já existe uma lei que trata dessa alegada dívida histórica: a 11.952, de 2009, que também foi aprovada por meio de conversão de Medida Provisória. Essa lei, que instituiu o programa Terra Legal, autoriza a regularização de imóveis da Amazônia Legal de até 1.500 hectares ocupados até dezembro de 2004. Assim, não seria preciso alterá-la para tratar desse assunto.
A segunda falha da defesa da MP 759 é que a grande dívida histórica fundiária do governo brasileiro está com povos indígenas e populações tradicionais cujos territórios não foram reconhecidos até o momento, mesmo que tenham prioridade legal para essa regularização. Por exemplo, o ritmo de demarcação de terras indígenas caiu drasticamente a partir de 2010. No momento, há 45 terras indígenas na Amazônia com processo para reconhecimento, sendo que parte dessas em estágio avançado que já poderiam ter resultado em demarcações. Além disso, há indicações de mais 207 terras indígenas no Brasil que ainda não tiveram processo de demarcação iniciado.
Mas, se a MP 759 não trata de fato de uma dívida histórica, qual é sua finalidade? A resposta pode ser encontrada em dois aspectos da parte do texto que altera as regras de regularização rural. O primeiro é a ampliação da data limite de ocupação da terra e do tamanho da área, permitindo regularização de grandes e recentes invasões de terra em terra pública. O segundo é a consolidação de valores de terra irrisórios para regularização. A combinação desses dois fatores sinaliza claramente que invadir terra pública é lucrativo, além de conceder anistia à grilagem e estimular a apropriação ilegal do patrimônio público?—?que, em geral, resulta em mais desmatamento ilegal.
Em relação ao prazo de ocupação, a nova proposta estende a possibilidade de regularização para áreas públicas invadidas até dezembro de 2011, ampliando o prazo em sete anos em relação ao que previa a Lei 11.592. A MP também estende o benefício da regularização para grandes invasores, permitindo a possibilidade de regularizar imóveis de até 2.500 hectares (mil hectares a mais que o permitido pelo Terra Legal). Quem invadiu terra pública após a aprovação da Lei 11.952 o fez sabendo que era ilegal e, portanto, praticou crime de invasão de terra pública, previsto no Art. 20 da Lei 4.947/1966. Ao ampliar o prazo para 2011, na prática a MP promove ampla anistia a esse crime. Além disso, historicamente no país o adiamento de prazos no tema fundiário leva à expectativa de que novas extensões ocorrerão no futuro. O resultado direto é a invasão de novas áreas públicas associada a desmatamento ilegal.
Não bastasse o prêmio da anistia, a MP 759 também concede um generoso subsídio aos invasores, ao consolidar um modelo de cobrança pela terra que foi alvo de crítica do Tribunal de Contas da União. Uma auditoria feita pelo TCU em 2014 no Programa Terra Legal, que implementa a Lei 11.952/2009 para regularização fundiária rural na Amazônia Legal, classificou os valores praticados pelo programa como irrisórios e contrários à legislação, determinando que fosse criada uma nova metodologia de cálculo. Porém, a MP 759 faz o contrário: ela traz para a legislação os valores irrisórios ao determinar que se cobre de 10% a 50% do valor mínimo da pauta de valores da terra nua elaborada pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Apenas como exemplo, um hectare de terra no município de Paragominas, no Pará, pode chegar a R$ 10.000,00 pelo valor de mercado, mas, pela regra da MP, o governo poderia cobrar R$ 45 na sua regularização.
Lembre-se que não se trata do agricultor familiar de baixa renda. Esse público já possui o benefício da doação em imóveis de até 1 módulo fiscal. Trata-se de médios e grandes imóveis de até 2.500 hectares, cujos responsáveis podem pagar o valor real da terra se efetivamente estiverem produzindo nela e não apenas especulando para lucrar com sua venda. Além disso, a cobrança de valores muito abaixo do mercado representa na prática uma concessão de subsídio. Um estudo do Imazon estimou que esse subsídio para 988 títulos emitidos no Pará foi entre R$120 e R$ 272 milhões até 2014 e poderia atingir entre R$ 250 milhões e R$ 501 milhões até 2018 considerando mais 1.500 títulos em fase mais avançada do processo de regularização pelo Programa Terra Legal.
Num período de crise econômica e de aumento do desmatamento, como observamos desde 2012, essa MP faz o contrário do que precisa ser feito ao permitir preços irrisórios e flexibilizar prazos para legalização de invasão de terra pública. As operações Castanheira e Rios Voadores, da Polícia Federal, que prenderam quadrilhas de grileiros que operavam no Pará, demonstraram que de fato existe uma corrida em curso para apropriação ilegal de terras públicas não destinadas na Amazônia. Por isso, o governo brasileiro deveria vetar a MP 759 e passar a mensagem de que não haverá tolerância com esse tipo de roubo do patrimônio brasileiro, ao invés de anistiar e de se tornar cúmplice dessa conduta criminosa com uma sanção presidencial.