Vão-se os anéis, ficam os dedos. O Ministério do Meio Ambiente está negociando com a bancada ruralista uma nova proposta de lei de licenciamento ambiental que isenta da necessidade de licença 97% dos imóveis rurais do país. O objetivo é evitar que a numerosa bancada ruralista, apoiada pelas confederações nacionais da indústria e da agricultura, aprove na Câmara dos Deputados o chamado “licenciamento flex”, que na prática acabaria com o licenciamento ambiental no Brasil.
O ministro Sarney Filho (PV-MA) apresentou aos deputados em janeiro o rascunho de um novo texto. Não será mais uma proposta do governo federal, como se tentou fazer, mas uma espécie de construção coletiva – ambientalistas e Ministério Público também serão chamados a palpitar no texto, segundo declarou o ministro ao OC.
Sarney resolveu tomar a dianteira da negociação com os deputados depois que a Casa Civil, no fim do ano passado, retalhou a proposta original de lei elaborada pelo MMA, que deveria ser enviada ao Congresso como projeto do Executivo. Diante de reclamação do Meio Ambiente contra o enfraquecimento do texto, o ministro Eliseu Padilha (PMDB-RS) deu carta branca à Câmara para votar o PL do deputado Mauro Pereira (PMDB-RS), redigido pelos ruralistas em colaboração com a CNA e a CNI. Apelidado “licenciamento flex”, o texto de Pereira essencialmente deixaria todas as decisões sobre o rigor da licença nas mãos dos Estados – até mesmo a decisão de não ter rigor algum.
O episódio quase causou a demissão de Sarney, que mandou uma carta a Padilha pedindo que interviesse para retirar o projeto de pauta, sob risco de causar uma avalanche de ações na Justiça contra o licenciamento e uma guerra ambiental entre os Estados. O “licenciamento flex” acabou não sendo votado, mas o tema é prioridade máxima dos ruralistas para 2017.
A nova minuta do MMA, datada de 17 de janeiro, tem metade do número de páginas do texto que saiu da Casa Civil e 31 artigos a menos. Ela mantém a essência do projeto inicial, que considera a localização do empreendimento o critério principal para definir o rigor do licenciamento. Mas faz uma série de concessões que, se aprovadas, enfraquecerão a lei em relação ao texto original e poderão dificultar a fiscalização do desmatamento e tirar do gancho centenas de fazendas embargadas pelo Ibama na Amazônia.
Uma das principais é a dispensa de licenciamento para propriedades rurais com área de até 15 módulos fiscais. Um módulo fiscal é uma medida que varia de município para município, usado pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) para categorizar as propriedades em pequena, média e grande e orientar as políticas fundiárias. Na Amazônia, a medida de um módulo pode chegar a 100 hectares.
Segundo levantamento feito pelo Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) a pedido do OC, 97% das propriedades rurais registradas no Cadastro Ambiental Rural estariam enquadradas na isenção (o CAR tem cerca de 3,2 milhões de propriedades cadastradas). Mas o número pode crescer, porque também estariam dispensadas de licenciamento todas as propriedades rurais em “área consolidada”, ou seja, que foram desmatadas até junho de 2008 e são passíveis de anistia pelo Código Florestal – independentemente de sua área.
Ninguém sabe quantos imóveis existem nesta condições no Brasil; isso será objeto dos PRA (Planos de Regularização Ambiental) do código nos Estados, mas os ruralistas estão se mobilizando para incluir o maior número possível de fazendas na anistia.
Essas isenções tendem a dificultar a ação do Ibama de embargo a propriedades com desmatamento ilegal na Amazônia.
O embargo tem sido o principal instrumento de controle do desmatamento. No ano passado, a devastação chegou a quase 8.000 quilômetros quadrados, a maior em oito anos, com a emissão de cerca de 130 milhões de toneladas de gases de efeito estufa.
Hoje há cerca de 2.000 fazendas embargadas na região por falta de licença ambiental. Se a lei de licenciamento for aprovada nesses termos, cerca de metade delas poderia se livrar do embargo e voltar a tomar crédito nos bancos.
“DOLO OU CULPA”
Outro ponto, que já está sendo criticado por especialistas que tiveram acesso ao texto, é a responsabilização dos bancos pelo dano ambiental. A proposta da Casa Civil, apresentada em novembro do ano passado, isentava completamente o sistema financeiro de corresponsabilidade por dano ambiental. A nova minuta restitui em alguma medida a responsabilização, mas com uma ressalva: as autoridades terão de provar que houve “dolo ou culpa” da instituição financeira e ligação causal entre o financiamento e o dano apontado. Como isso nem sempre é simples de estabelecer, os bancos podem ficar mais à vontade para emprestar para poluidores e degradadores.
Há mudanças também na chamada matriz de enquadramento, que define o grau de rigor do licenciamento de acordo com o local, o porte do empreendimento e seu potencial poluidor. Esta é a grande inovação da proposta do MMA, que reconhece que um posto de gasolina na cidade de São Paulo não pode passar pelo mesmo trâmite burocrático que uma hidrelétrica na Amazônia.
Uma das principais novidades da lei geral de licenciamento, a matriz será baseada no mapa de áreas prioritárias para a conservação do Ministério do Meio Ambiente. Na proposta original, empreendimentos de grande porte e alto potencial degradador precisariam de licenciamento em três fases e com EIA (estudo de impacto ambiental) em qualquer localização. A nova matriz só impõe essa necessidade caso o empreendimento esteja em áreas de relevância alta e extremamente alta para a conservação.
Procurado pelo OC, o ministro Sarney Filho afirmou que “não houve afrouxamento” da proteção na minuta. “A concessão principal é no licenciamento das atividades agrossilvopastoris em áreas consolidadas. Mas isso não compromete de jeito nenhum, porque hoje é pior”, afirmou.
Sarney se mostrou otimista com a reação dos ruralistas – que toparam sentar para discutir o texto com o ministro, cuja cabeça vinham pedindo um dia sim e outro também – e da indústria. “Eles estão aceitando o EIA com o mapeamento das áreas sensíveis.”
O deputado Mauro Pereira evitou fazer comentários a respeito da proposta do MMA. Mas sinalizou que existe um diálogo. “Não há queda de braço”, afirmou ao OC. Os ruralistas ainda defendem a proposta do deputado gaúcho, mas temem uma onda de ações judiciais caso ela seja aprovada.
Pereira disse que a lei de licenciamento aguarda para ser votada “há 12 anos” e que a bancada tem pressa, mas que é preciso bom senso. “Não adianta a Câmara estar na contramão do Ibama, do Conama [Conselho Nacional do Meio Ambiente]. Temos de discutir como gente madura, senão não anda.”
Fonte: 0202Observatório do Clima