A realidade sempre sai em desvantagem quando é confrontada pela ilusão. A afirmação é perfeitamente compreendida por todos aqueles que, diante de um dilema, foram compelidos a tomar decisões graves, que exigiram ponderações e escolhas difíceis. São os “hard cases”, dos quais não há saída perfeita.
Pela natureza da nossa instituição, talhada para a persecução penal, é evidente que, se fosse possível, jamais celebraríamos acordos de colaboração com nenhum criminoso.
No campo plasmável da vontade, desejamos o rigor máximo para todos os que transgridem os limites da lei penal, sem concessões. Mas, desafortunadamente, o caminho tradicional para aplicação da lei penal tem-se mostrado ineficaz e instrumento de impunidade.
Não é por outra razão que o acordo de colaboração foi pragmaticamente acolhido, em grande parte dos ordenamentos jurídicos do mundo ocidental, como exigência indispensável no combate às organizações criminosas.
O fato incontornável, porém, é que, defrontado com a realidade e premido pelo senso de responsabilidade para com o país, apartei-me da utopia, do personalismo e do aplauso fácil para arrostar a decisão de celebrar o acordo com os donos do grupo empresarial J&F.
Depois da colaboração da Odebrecht, o alvo da vez é o acordo com os proprietários do grupo J&F. Quando acreditávamos que nada mais poderia ser desnudado em termos de corrupção, esse acordo demonstrou que três anos de intenso trabalho não foram suficientes para intimidar um sistema político ultrapassado e rapineiro. Autoridades em altos cargos continuavam a corromper, e ainda se deixavam ser corrompidos, sem receios ou pudor.
Isso, no entanto, pareceu de pouca gravidade para alguns. Um importante veículo de imprensa, em editorial, sintetizou as críticas: a) os áudios não foram periciados; b) o acordo foi brando com os colaboradores; c) o caso não deveria ter ido para o ministro Edson Fachin, mas sim levado à livre distribuição no plenário do STF. Fui tachado de irresponsável.
Pois bem. Os irmãos Batista, em troca dos benefícios, relataram o pagamento de propina a quase 2.000 autoridades do país, apresentaram provas muito consistentes, contas no exterior, gravações de crimes e auxiliaram na realização de ação controlada pela polícia. Tudo isso só foi possível nos termos acordados.
É verdade que os áudios ainda não foram periciados. Nesse ponto, é preciso esclarecer que o inquérito requerido ao STF, entre outras tantas coisas, serve para viabilizar a realização dessa diligência. Ao contrário do que se vem propagando, esses áudios, apesar do impacto para a opinião pública, são apenas uma pequena parte da colaboração. Há muitas outras provas que sustentam o acordo.
Finalmente, a última objeção é a prova de desconhecimento do editorialista acerca do que opinava. Os crimes revelados pelos colaboradores eram, ao menos em parte, direcionados a obstar as investigações da Lava Jato, as quais estão sob a condução do ministro Fachin -ou seja, são fatos conexos e, portanto, deveriam ser distribuídos a ele.
Só posso, assim, imputar à ignorância -pelo benefício da dúvida-certas críticas arrogantes lançadas sobre a atuação do Ministério Público Federal nesse caso. Parece-me leviandade julgar a escolha realizada sem examinar as provas e seu alcance, desconsiderando as circunstâncias concretas e a moldura de um sistema criminal leniente.
Os reais motivos dessas pessoas estão, na verdade, mal dissimulados em supostas preocupações com a estabilidade, a economia e o bem-estar do povo.
Para esses, sou enfático: não foi a nossa instituição que corrompeu a política nacional, a vontade dos eleitores e o próprio sentido de democracia. Ao contrário, a luta do Ministério Público tem sido perene e constante contra as mazelas da corrupção que conspurcam o Estado de Direito, abastardam a sociedade e roubam o futuro do país.
O fruto do esforço institucional está aí para os que têm olhos de ver: três anos de um trabalho árduo que, contra todas as probabilidades de nosso sistema criminal permissivo, encarcerou dezenas de poderosos políticos e empresários e restituiu para os cofres públicos, até o momento, o montante de quase R$ 1 bilhão.
Os cidadãos honestos deste país devem se perguntar: se tantos críticos tinham o mapa do caminho, a solução perfeita forjada em suas mentes utopistas que solucionaria sem custos o descalabro econômico, moral e político para o qual fomos arrastados, por que não o apresentaram?
Ou melhor, por que não o colocaram em execução e evitaram o atual estado de coisas?
A resposta é muito simples. Não há caminho mágico para sair da crise criada pela incúria e desonestidade de parte da classe dirigente do país. Tirar o Brasil do círculo vicioso da corrupção terá um custo, que poderá ser pago agora ou postergado para um futuro distante.
A sociedade tomará essa decisão. Estou confiante de que a escolha, apesar das forças que operam em sentido contrário, será a favor de um futuro de justiça e prosperidade, erguido em base sólida e consistente.
O país cansou do engodo, da hipocrisia, dos voos de galinha de economia sustentada no favorecimento, de seguir para logo retroceder. A hora é de mudança.
RODRIGO JANOT, mestre em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é procurador-geral da República
Fonte: Folha de São Paulo