A comissão da Câmara dos Deputados que analisa a reforma política aprovou nesta semana o sistema do “distritão” para as eleições de 2018 e 2020. Caso a proposta passe no Congresso, serão eleitos os deputados e vereadores com maior votação, daí o sistema ser considerado majoritário. Hoje, no chamado sistema proporcional, valem os votos recebidos pelo conjunto dos candidatos do partido e também pela legenda.
A instituição do distritão é alvo de críticas de especialistas e de políticos. Para entrar em vigor, a mudança no sistema eleitoral ainda precisa de aprovação, em dois turnos, no plenário da Câmara, para então seguir para o Senado, onde também há necessidade de aprovação em dois turnos.
A alteração foi aprovada na comissão na madrugada de quinta-feira, por 17 votos a 15, em proposta apresentada pelo PMDB do presidente Michel Temer e apoiada pelas bancadas do DEM, PSDB, PSD e PP.
O sistema proposto pelo “distritão” é simples: seriam eleitos os deputados mais votados em cada Estado. Entenda, ponto a ponto, a possível mudança política e por que ela causa tanta polêmica.
Como votamos hoje?
Hoje, a eleição de deputados federais e estaduais é proporcional: para ser eleito, o candidato depende não apenas dos votos que recebe, mas também dos votos recebidos pelo partido ou coligação. Os assentos parlamentares são distribuídos conforme essa votação partidária.
O sistema, porém, traz incongruências: um candidato com votação significativa pode acabar não sendo eleito caso seu partido não atinja o chamado “quociente eleitoral”; e um candidato que não receba tantos votos assim pode acabar sendo eleito caso sua legenda tenha um “puxador de votos”, ou seja, um candidato muito bem votado que acabe elevando o quociente partidário de sua coligação. É o que ficou conhecido como “efeito Tiririca”, quando o humorista conquistou 1,3 milhão de votos nas eleições de 2010 no Estado de São Paulo e carregou consigo outros três candidatos menos votados de seu partido, o PR, à Câmara dos Deputados.
O que mudaria?
A mudança aprovada na comissão troca o sistema proporcional pelo majoritário: entre os candidatos, seriam eleitos os receptores do maior número de votos. No Estado de São Paulo, por exemplo, que tem 70 cadeiras na Câmara, seriam eleitos os 70 candidatos com o maior número de votos individualmente.
Defensores do sistema argumentam que ele é simples de ser entendido e aplicado, reduzirá o número de candidatos e acabará com a figura dos “puxadores de voto”. “(O sistema) segue o princípio constitucional de eleger os candidatos mais votados”, disse em 2015 o então vice-presidente Michel Temer. “Só se candidatará quem souber que tem chance de se eleger. Isso vai diminuir sensivelmente o número de candidaturas de cada partido e tornará a fala dos candidatos mais programática.”
“O modelo atual está esgotado. Não dá para fingir que está tudo bem e continuar com o sistema atual, vamos de distritão na transição para um sistema misto mais elaborado e transparente a partir de 2022”, disse nesta semana o deputado Marcus Pestana (PSDB-MG).
Mas o sistema do distritão – que atualmente vigora apenas no Afeganistão, na Jordânia e em alguns pequenos países insulares – é também um dos mais criticados por especialistas e até por parte da classe política. Muitos acreditam que o modelo traz problemas ainda maiores do que os do sistema proporcional atual.
“(O modelo) não é usado por nenhuma democracia consolidada, então inclusive há poucos casos concretos para se estudar na ciência política”, diz à BBC Brasil Yuri Kasahara, doutor em ciência política pelo Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e pesquisador de estudos internacionais e de América Latina no Instituto Norueguês de Pesquisas Urbanas e Regionais.
“O Japão chegou a adotar o modelo no pós-guerra, mas mudou no final dos anos 1980.”
Quais são as críticas ao ‘distritão’?
A primeira crítica é que a mudança beneficiaria candidatos já conhecidos do grande público, capazes de atrair grande número de votos, em detrimento de candidatos novos ou representantes de minorias, por exemplo. E, ao mesmo tempo em que o modelo daria força aos candidatos individualmente, tenderia a enfraquecer os partidos. “O sistema favorece a personalização das campanhas, porque o que conta é o desempenho dos candidatos individualmente”, diz Kasahara.
“Isso acabaria com qualquer incentivo ao esforço coletivo e com o voto na legenda. Os partidos seriam incentivados a apresentar candidatos com forte base regional, apelo individual e posições extremas e capacidade de arrecadar fundos. Se favorece a individualização, enfraquece ainda mais a ideia de uma campanha séria e baseada em propostas. Acredito que haverá uma queda na qualidade do debate eleitoral.”
Ele avalia que os próprios partidos terão dificuldades em coordenar as campanhas para eleger o maior número possível de candidatos.
“Será que um candidato que tem potencial de receber 50 mil votos será eleito? E o eleitor também terá dificuldades. Sei que o candidato A não é tão popular. Voto nele mesmo assim (e corro o risco de desperdiçar o voto)? Ou voto no B, que é superpopular e sei que ele será eleito de qualquer forma?”
Isso leva à segunda crítica: o desperdício de votos.
“Quando se fala que o distritão é um bom sistema, pois garante a eleição dos mais votados, cabe perguntar para onde vai o voto de milhões de eleitores que votaram em nomes que não se elegeram. Seriam simplesmente jogados fora”, escreveu em 2015 em artigo ao jornal Folha de S.Paulo o cientista político Jairo Nicolau, professor da UFRJ. No sistema atual, só se perdem os votos em candidatos cujos partidos não elegeram ninguém.
“Hoje, como votamos em partidos, praticamente todos os nossos votos são aproveitados (na determinação do equilíbrio de forças do Legislativo). É uma característica do sistema proporcional que se perderia”, explica Kasahara.
O ‘distritão’ reduzirá custos de campanha e número de partidos?
Temer diz que sim, sob o argumento de que os partidos serão mais seletivos quanto ao número de candidatos (já que o sistema privilegia os de grandes votações). Isso levaria à redução dos custos de campanha e do número de partidos.
Mas não há consenso a respeito.
O líder do PSOL na Cãmara, Glauber Braga (RJ), afirma que quem apoia o distritão quer campanhas bilionárias e pouca renovação parlamentar. “A gente não precisa sair de um sistema que seja bilionário empresarial para um sistema que seja bilionário com recursos públicos.”
E se o ‘distritão’ tivesse valido nas últimas eleições?
O pesquisador Márcio Carlomagno, da UFPR, simulou como teria ficado a Câmara dos Deputados caso o distritão tivesse valido nas eleições de 2014, em vez do proporcional. A mudança não teria sido tão drástica: 45 cadeiras de 513 (ou 8,77%) seriam ocupadas hoje por outros deputados federais, que não os que entraram pelo atual sistema proporcional.
O modelo também teria mudado pouco a configuração partidária: alguns partidos grandes teriam ganho no máximo cinco cadeiras; alguns pequenos teriam perdido ou ganhado uma cadeira. “A chamada ‘distorção’ do atual sistema seria de apenas 8,77%, se comparado ao novo sistema proposto. Então podemos dizer que o ‘distritão’ está propondo resolver um problema que praticamente não existe”, explica Carlomagno.
“O atual sistema já dá conta que, em sua larga maioria, os mais votados sejam os eleitos. O chamado ‘fenômeno Tiririca’ é uma pequena exceção, não a regra.”
O ‘distritão’ é o mesmo que voto distrital?
Não exatamente, apesar de ambos serem modelos de voto majoritário. No sistema distrital puro, adotado em países como Reino Unido, o país é dividido em pequenos distritos, e cada um deles elege um representante ao Parlamento. Os partidos postulam um candidato por distrito e somente o vencedor da eleição conquista a cadeira.
No distritão, cada Estado seria considerado um grande distrito, cada qual com seu número pré-determinado de assentos na Câmara. São Paulo, por exemplo, seria um distrito com 70 cadeiras.
Que outros modelos existem?
O modelo mais defendido por especialistas costuma ser o distrital misto de inspiração alemã. Neste, metade da Casa é eleita pelo voto distrital – em que vence o candidato mais votado em cada região – e a outra metade é escolhida proporcionalmente pelo voto no partido. No Brasil, a proposta é historicamente defendida pelo PSDB e ganhou apoio do PT.
Outro modelo existente (e inicialmente defendido pelo PT) é o sistema proporcional de lista fechada, em que vota-se apenas no partido – e cada legenda oferece uma lista de candidatos que serão eleitos de acordo com a votação recebida pela legenda.
Kasahara explica que esse modelo é usado em alguns países europeus, como a Noruega, mas com lista semiflexível, em que o eleitor pode propor mudanças na ordem de candidatos apresentada pelos partidos.
Além do sistema eleitoral do Legislativo, o que está em debate na reforma política?
Outra proposta polêmica aprovada nesta semana na comissão na Câmara foi a criação de um fundo público de R$ 3,6 bilhões para financiar campanhas no país.
Os deputados também mantiveram a figura do suplente de senador, que seria extinta pelo relatório de Vicente Cândido. O relator da comissão havia proposto que o deputado federal mais votado da sigla ou coligação do senador o substituísse nas licenças. Atualmente o senador é eleito com dois suplentes.
A votação do parecer do relator não foi concluída e deverá ser retomada na próxima semana. “O que foi votado até agora é a reforma para os políticos, é a reforma para os mandatos. Eu temo que ao final desse trabalho seja apenas para constituir um fundo (de financiamento de campanhas)”, disse Cândido.
BBC Brasil