Há 11 anos os moradores esperam pelo plano de manejo, documento que tem as normas do uso dos recursos naturais. Sem as normas, eles dizem que são proibidos de caçar, pescar e fazer as roças de subsistência.
O Amazonas tem grandes extensões de florestas e bons exemplos de que a população tradicional pode sobreviver em áreas protegidas em equilíbrio com a natureza. Mas na unidade de conservação Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Tupé os moradores vivem um conflito ambiental. A indígena da etnia Baré, dona Jeremias de Souza Tavares, 52 anos, é moradora da Comunidade Nossa Senhora do Livramento, que fica dentro da reserva. Mãe de 12 filhos, ela diz que é proibida pela Prefeitura de Manaus de praticar atividades básicas como fazer o roçado para plantar, além de caçar e pescar para a subsistência da família.
“Eu sou índia da etnia Baré, e quantas vezes você viu índio tocar fogo na floresta? A gente só derruba o que vai usar para o nosso sustento. O terreno não está nem a metade derrubado [de árvores] porque eu aproveito a terra no que posso aproveitar. Tem castanha, pupunha, manga, açaí. Tem tudo de onde eu tiro meu sustento”, afirma Jeremias Tavares.
Considerada um paraíso da biodiversidade amazônica e localizada a menos de 25 quilômetros da área urbana de Manaus, a RDS do Tupé foi criada em 2005 por meio de decreto municipal para amenizar os impactos socioambientais da especulação imobiliária e a exploração ilegal dos recursos naturais em seu interior. Há 11 anos a população tradicional da reserva espera pela regulamentação do plano de manejo, que é o documento que estabelece o zoneamento e as normas de uso e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação das estruturas físicas necessárias à gestão da unidade de conservação.
Diz o Decreto 8.044 que criou a RDS do Tupé que a Prefeitura de Manaus deve promover na reserva “o desenvolvimento sustentável das populações tradicionais que habitam a área de 11.930 hectares, com prioridade ao combate à pobreza”. Em outro ponto diz que será o plano de manejo que vai definir a “regulamentação das atividades econômicas dentro da reserva”.
O plano de manejo da RDS do Tupé foi elaborado por meio de consultorias contratadas pelo projeto Corredores Ecológicos, com recurso do Ministério do Meio Ambiente. A agência Amazônia Real apurou que a elaboração do plano de manejo foi concluída em 2008, na gestão do ex-prefeito Serafim Corrêa (PSB), que assumiu o cargo em 2005. O documento precisaria da aprovação do Conselho Deliberativo da RDS do Tupé, o que não aconteceu durante a administração do ex-prefeito Amazonino Mendes (PDT) de 2009 a 2012.
Em 2013, assumiu a prefeitura Arthur Virgílio Neto (PSDB). Segundo a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semmas), atualmente o plano de manejo da RDS do Tupé passa por reformulação.
A previsão, diz a Semmas, é que até o fim do ano a revisão esteja concluída. Isto é, depois das eleições de outubro em que Arthur Virgílio concorre à reeleição.
Entre as atividades que deveriam ser regulamentadas para garantir a sobrevivência da população tradicional estão a caça, a pesca e o roçado, além de ações para o lazer e turismo de base comunitária. A reportagem da Amazônia Real teve acesso ao plano de manejo em vigor. O documento não deixa claro quais atividades econômicas estão permitidas ou vetadas dentro da reserva. Sem as normas um conflito ambiental se intensifica dentro da RDS do Tupé.
Maria Rosanir da Silva Oliveira, 54 anos, é a secretária da Associação da Comunidade Nossa Senhora do Livramento. Em entrevista à reportagem, ela disse que desde 2014 os moradores do Tupé não conseguem fazer as roças para os plantios.
“Temos 30 pedidos para fazer roçado e a Semmas não libera. Não lemos o plano de manejo, nenhum conselheiro tem esse documento. Sem o plano, ficamos impedidos de colocar o nosso roçado, de construir uma casa, fica tudo inviável para nossa subsistência, não podemos fazer nada”, disse.
Segundo a secretária, nas assembleias gerais, onde os 12 conselheiros da reserva que representam as seis comunidades tradicionais se reuniram, a Semmas não apresentou uma solução para concluir as normas do plano de manejo, permanecendo o impasse.
“Nossa última reunião foi no dia 22 de agosto passado. Tivemos uma assembleia geral e fizemos muitas perguntas para o gestor (funcionário da Semmas), mas ele não soube responder. Fico muito triste com tudo isso. Alguém tem que olhar pra gente. Nós somos a população tradicional da reserva, temos a nossa responsabilidade. Não podemos sair daqui para trabalhar em Manaus, onde o transporte é caro, a comida é cara. Nosso meio de vida é aqui. É aqui que temos que viver desta terra, preservando ela”, disse Rosanir Oliveira, que mora no Tupé há 29 anos.
A opção do Bolsa Família
Antes de virar uma área protegida, no histórico da RDS do Tupé há descrição de que o local foi moradia de indígenas de etnias extintas como os Manaós –que deram origem ao nome da cidade de Manaus – e Tarumã. Os ribeirinhos começaram a ocupar a região nos anos 1970. Dentro da reserva estão reconhecidas hoje seis comunidades, conforme o plano de manejo. São elas: São João do Lago do Tupé, Colônia Central, Nossa Senhora do Livramento, Julião, Agrovila Amazonino Mendes e Tatu (também chamada de Tatulândia). A população atual é de cerca de 5.000 pessoas, de acordo com a Semmas.
A Amazônia Real visitou a RDS do Tupé no começo de agosto para ver de perto como está a situação das famílias na comunidade Nossa Senhora do Livramento. Para chegar até lá é preciso embarcar em uma voadeira (barco de alumínio com motor de popa) na Marina do Davi, zona oeste de Manaus. Após 20 minutos navegando pelo rio Negro é possível chegar ao destino, no igarapé Tarumã-Mirim. A comunidade é cercada por várias praias de areia branquinha.
Logo na entrada da comunidade do Livramento uma pequena igreja católica, construída às margens do igarapé Tarumã-Mirim, resiste em meio à “invasão” das denominações evangélicas. Mas a proximidade com o aeroporto internacional de Manaus provoca um impacto sonoro quando os aviões sobrevoam a área em altura baixa, o que provoca certo barulho.
Sem poder cultivar o roçado, dona Jeremias Tavares tem no programa Bolsa Família a sua principal fonte de renda. Pelos dois filhos que ainda estão em idade escolar recebe R$ 300. “Com isso não dá nem para comprar o material escolar deles. Se eu não levar meu dinheiro reserva eu fico na cidade sem poder voltar porque não sobra nem o da passagem”, relata Jeremias Tavares dizendo que encontra como alternativa de renda a venda da banana produzida pelos 150 pés cultivados em seu terreno, e dos patos que cria.
O reforço do artesanato
“A vida está muito difícil, pois não temos trabalho. Aqui é quase um bairro de Manaus e estamos totalmente abandonados pela prefeitura e pelo governo. Não se pode pescar, plantar, fazer nada”, diz Eliana Torre Deni, 39 anos, que mora dentro da RDS do Tupé desde os sete anos de idade, quando a família migrou do município de Lábrea, no sul do Amazonas.
Da etnia Baré, as irmãs Eugênia e Diva Martins, de 63 e 74 anos, respectivamente, encontram no artesanato uma forma de assegurar dinheiro para a família. A conversa delas com a reportagem se deu enquanto faziam trabalhos de bordado em toalhas, produtos que esperam vender para o próximo turista que escolher a comunidade para passar um fim de semana.
Elas reclamam da falta de opções por parte da prefeitura para oferecer alguma fonte de renda dentro da unidade de conservação. “Nós estamos vivendo aqui por nosso próprio esforço mesmo. É proibido tudo, não nos deixam fazer nada. Eu estava tirando capim do meu terreno para colocar um feijão e arroz e foram dizer que eu estava desmatando. Joguei todas as sementes fora. Como vou sobreviver assim?”, diz Eugênia Martins.
As artesãs moram na região do Tupé desde 1979 vindas do município de Santa Isabel do Rio Negro, na região do Alto Rio Negro (AM). Elas não são beneficiárias do Bolsa Família. Eugênia Martins obtém dinheiro por meio de serviços de costuras, com o conserto de roupas da vizinhança. “É com isso que compro meu cafezinho, meu pão.”
Ana Lima Martins, 41 anos, é filha de dona Diva Martins e trabalha como professora contratada pela Secretaria Municipal de Educação na escola indígena de Livramento. Não há um número oficial, mas os moradores estimam que 50 famílias indígenas de diferentes etnias moram na comunidade. Formada em pedagogia, ela leciona a cultura e a língua nativa do seu povo (Baré) para crianças entre cinco e 13 anos.
A professora se queixa da falta de assistência técnica que oriente as famílias que moram na reserva a adotar uma agricultura que esteja em acordo com as normas da unidade.
“Eles têm que trazer cursos de como manejar, como fazer uma horta, de como preservar. Eu moro há 37 anos aqui e não posso ter meu roçado porque não tenho um terreno,” afirma Ana Lima.
Além da população tradicional, há dentro da RDS do Tupé propriedades privadas (casas de veraneio), a maioria de ricos empresários de Manaus. Eles construíram ao menos 40 propriedades, que são chamados pelos ribeirinhos de “sitiantes”. A Semmas não confirma o número de “sitiantes” pois diz que não tem um levantamento desses moradores. Segundo a secretaria, a categoria de RDS permite a existência de propriedades privadas dentro da reserva. No entanto, os “sitiantes” vendem e compram propriedades dentro da reserva, o que fomenta a especulação imobiliária, que é proibida conforme a legislação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Sinuc).
Fiscais embargaram obras
Morando às margens do rio Negro desde os sete anos de idade, quando chegou acompanhada do pai e de toda a família, Eliana Torre Deni, 39 anos, criou seus quatro filhos dentro da Comunidade Nossa Senhora do Livramento. Dos tempos de criança até hoje, comenta ela, muitas coisas mudaram. De 2005 para cá, quando da criação da reserva, a indígena da etnia Deni diz que inúmeras restrições foram impostas aos povos tradicionais.
Com o marido, ela tenta construir uma pequena área de lazer no quintal de sua propriedade. A vista do local dá para uma praia do rio Negro. A obra foi embargada pelos fiscais da Semmas, que proíbe a retirada de areia e de madeira para as construções.
“A Semmas diz que aqui é uma reserva sustentável. Sustentável de quê? Ela prometeu mundos e fundos de um projeto que nunca existiu. A gente precisa plantar, precisa pescar”, diz Eliana Deni, cuja família saiu de uma aldeia às margens do rio Purus, no município de Lábrea, sul do Amazonas.
“Aqui é quase um bairro de Manaus e estamos totalmente abandonados pela prefeitura e pelo governo. A Semmas deveria ter um projeto para as mulheres trabalharem, para os homens trabalharem. O meu marido está desempregado”, completa Eliana Deni. Com o marido sem encontrar emprego, os R$ 411 que recebe do Bolsa Família por seus quatro filhos estarem na escola tem sido a única renda da casa.
O projeto do ecoturismo
Para tentar reverter a atual situação de falta de recursos para sobrevivência, os líderes da comunidade tentam desenvolver projetos na área de ecoturismo para garantir algum dinheiro em circulação. Eles reclamam, porém, da não obtenção de apoio por parte da Prefeitura de Manaus.
O projeto de turismo ecológico na comunidade vem sendo tocado por William da Silva Oliveira, 32 anos, filho de Seu João Oliveira, 63 anos, presidente da Associação de Moradores de Livramento. Ele afirma que tem batido à porta de várias entidades em busca de parceria para tirar do papel a ideia do ecoturismo. Entre eles está o curso de Turismo da Universidade Estadual do Amazonas (UEA). Alunos e professores têm auxiliado William no desenvolvimento do projeto.
Desempregado, William Oliveira precisa fazer rifas para obter dinheiro e, assim, ir a Manaus para cobrar das autoridades a ajuda para que o turismo garanta à comunidade alguma fonte de renda, já que outras atividades têm restrição.
“Até virar uma reserva, a agricultura e a pesca eram uma fonte de renda para as famílias do Tupé. Não vou dizer que o turismo vai resolver todos os nossos problemas, mas vai amenizar muito. Com o turismo quem vier para cá já vai deixar um dinheiro para uma família comprar o frango, o leite, o arroz. Nós temos três projetos nas secretarias e até hoje não recebemos a resposta para nenhum”, diz Oliveira.
Ainda assim, ele afirma não ser contra a criação da RDS do Tupé. “Foi graças a ela que a floresta se manteve em pé e uma grande área de floresta ficou livre da exploração de atividades predatórias. Se não fosse a RDS as madeireiras iam chegar aqui, encostar as balsas e carregá-las de toras de madeira e levar nossa riqueza”, disse Oliveira.
O que diz a Semmas?
Em entrevista à Amazônia Real, o diretor de Áreas Protegidas da Semmas, Márcio Bentes, falou sobre as denúncias da população tradicional da RDS do Tupé. Ele explicou o porquê de o plano de manejo passar por reformulação.
“A gente tem uma regulamentação separada, e aquilo que não entrou no plano de gestão [manejo] entrou numa resolução estabelecida pelo próprio conselho do Tupé, que trata da gestão das praias e de instruções de algumas atividades. No plano de gestão estão as normas gerais. Por isso ele está numa fase de revisão. Estamos entrando na etapa do novo plano de gestão, que trará justamente as regras de uso com as comunidades, a revisão das existentes e a construção de novas”, afirma o diretor.
Segundo Márcio Bentes, a previsão é que até o fim do ano a revisão do plano de manejo esteja concluída, deixando apenas um documento oficial para regulamentar a reserva.
“Nós ainda não temos uma legislação própria nesse nível para dizer o que pode e o que não pode. O que nós fazemos é usar a legislação [federal] existente, que trata da proibição dos tipos de peixe [a pescar]. A atividade da pesca tem vários regulamentos”, ressaltou.
“Queremos deixar tudo num único documento, que é o mais correto. O atual deixou algumas lacunas à época. A lei prevê que a cada cinco anos é preciso fazer a revisão do plano pois há um processo muito dinâmico dentro da reserva, e nós estamos exatamente neste momento”, diz o diretor da Semmas.
Sobre a proibição da agricultura e a pesca de subsistência dentro da RDS do Tupé, Bentes disse que “é permitida a prática de atividades econômicas de baixo impacto ambiental dentro da reserva por parte dos moradores”.
“Nós incentivamos e apoiamos qualquer atividade como agricultura de base familiar, com boas práticas de produção da farinha. São coisas que eles já produzem lá. A pesca é permitida dentro dos limites daquilo que estabelece a legislação federal. Isso de que estaríamos impedindo de terem alguma atividade econômica não procede”, afirmou Márcio Bentes.
De acordo com ele, apesar de a caça ser estritamente proibida, a secretaria faz exceção aos moradores da RDS do Tupé, desde que seja para o próprio consumo. “Na Amazônia, quando um morador da reserva caça um animal para se alimentar, nós usamos do bom-senso e não o penalizamos”, diz o diretor.
Sobre o projeto de ecoturismo dos comunitários, Márcio Bentes disse que a secretaria desenvolve projetos para incentivar a atividade na reserva. Conforme o diretor, mais de 40 moradores da comunidade do Livramento receberam cursos de inglês básico. Para Bentes, o turismo é a grande vocação econômica da RDS do Tupé.
“Nós queremos um turismo ordenado, organizado pela comunidade, feito pelos moradores. Enquanto gestores públicos nós apenas apoiamos, não podemos organizar, fazer tudo por eles”, afirma Márcio Bentes.
Em relação aos “sitiantes” que vivem dentro da RDS do Tupé, o diretor afirmou que a gestão territorial da unidade integra as discussões de reformulação do plano de manejo. Ele disse que os problemas relacionados à posse de terra serão solucionados a partir dos debates com os moradores. Possíveis ações judiciais para a retirada de moradores, diz o diretor, só se dará se houver conflitos com a comunidade. “Este é o extremo do extremo.”
A Amazônia Real perguntou de Márcio Bentes quantas revisões foram realizadas no plano de manejo da reserva do Tupé, tendo em vista que, segundo ele, a lei prevê que isto deve ser feito a cada cinco anos. Desta forma, a primeira revisão deveria ter ocorrido em 2013. Segundo ele, contudo, a atual é a primeira revisão que está sendo desenvolvida.
Direitos e deveres
A advogada Evelinn Flores de Oliveira é especialista em direito ambiental e teve a RDS do Tupé como objeto de estudo em sua tese de mestrado, concluída em 2010. Seus artigos científicos e estudos sobre a unidade foram usados como uma das bases para a elaboração do atual plano de manejo em vigor.
Segundo ela, a criação de uma unidade de conservação implica uma série de restrições – tanto para as comunidades que estão em seu interior, quanto para o estado. Em uma unidade de desenvolvimento sustentável, explica ela, está permitido o desenvolvimento de atividades, desde que regulamentadas pelo plano de manejo.
“Quando se constitui uma reserva é feito o estudo e a população sabe o que vai ser feito, e começa a saber também, ou deve pelo menos saber, dos impedimentos [das atividades econômicas]. Os comunitários que já moravam no local não podem usar a propriedade como bem entendem. Eles não podem usar como bem entendem, mas podem utilizar dentro de algumas limitações. E essas restrições são impostas pelo plano de manejo ou algum outro documento antes da elaboração do plano de manejo”, afirma a advogada Evelinn Flores.
De acordo com ela, o plano de manejo define como as comunidades que estão dentro de uma unidade de conservação podem desenvolver suas atividades econômicas, estabelecendo critérios para que causem o menor impacto possível à área protegida. Sobre a RDS do Tupé. Evelinn Flores afirma que a unidade exerce uma importante função na proteção da área verde no entorno de Manaus.
“A reserva do Tupé é importantíssima em todos os sentidos. Já abrigava uma população tradicional com modos de vida peculiar, bem específicos, de sobrevivência. Há espécies de fauna que, segundo estudos, só existem lá. Pelo aspecto humano e biológico a RDS é fundamental. O estado, o município e a União têm o dever de efetivar essas áreas e garantir recursos financeiros para estrutura-la. Não é porque a população [dentro da reserva] aumentou que eu tenho que tirar a proteção”, declara a advogada Evelinn Flores de Oliveira.