Projetos para endurecer controles da atividade que responde a 10% do PIB do Estado esbarram na defesa dos empregos gerados
Os belo-horizontinos que contemplam a magnitude da Serra do Curral, o mais emblemático cartão postal da capital mineira, tombada como patrimônio histórico desde a década de 1960, preferem não pensar que no interior da montanha, de costas para a cidade, há uma enorme cratera engendrada por anos de intensa atividade mineratória. Não muito distante dali, no mirante conhecido como Topo do Mundo, ponto alto da Serra da Moeda, avista-se um lindo pôr-do-sol e o vale onde Brumadinho repousa às margens do Rio Paraopeba. A beleza do horizonte, adornado pelas cores do entardecer, disfarça os pontos visíveis da exploração mineral, incluindo a Mina do Córrego do Feijão, controlada pela Vale, cujo rompimento de uma barragem deixou ao menos 58 mortos e mais três centenas de pessoas desaparecidas.
Entre paisagens e escavadeiras, Minas Gerais está embrenhada em um mar de contradição. Ao mesmo tempo em que se orgulha de suas montanhas, não consegue se tornar menos dependente de um eixo econômico que persiste em destruí-las. A mineração representa quase 10% do PIB do Estado, responsável por mais da metade da produção de minerais metálicos do país. Por ano, cerca de 300 municípios mineradores despejam no mercado quase 200 milhões de toneladas de minério de ferro. Os lucros, porém, camuflam uma realidade de risco constante no plano socioambiental. De acordo com o Banco de Dados de Barragens da Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM), Minas possui 698 barragens de rejeitos minerais, sendo que duas dezenas delas não têm estabilidade garantida – a do Feijão, em Brumadinho, estava em situação regular.
No entanto, segundo estimativas de órgãos ambientais, entre 300 e 400 barragens apresentam risco de rompimento. O Ibama endossa esse cálculo. Em dezembro, o representante da entidade no Estado, Julio César Dutra Grillo, participou de uma reunião na Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) organizada pela Câmara de Atividades Minerárias, reguladora de empreendimentos no setor, que terminou com a concessão de uma licença para a continuidade de operações da Vale na Mina do Córrego do Feijão. Ele alertou que as barragens da mineradora ofereciam risco aos moradores da região e se absteve de votar. O único voto contrário, entre os oito favoráveis à demanda da Vale, foi o da ambientalista Maria Teresa Corujo, integrante do Fórum Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas (Fonasc). “A empresa deixou de prestar várias informações. Essas pendências, por si só, já configuravam motivo para não licenciar”, afirma Corujo.
Fiscalização insuficiente e licenças concedidas com base em diagnósticos elaborados pelas empresas interessadas, sem a devida checagem ou vistorias de órgãos governamentais, abrem terreno para a mineração predatória. Foi essa a constatação de uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) no Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), autarquia responsável pelas inspeções de segurança em barragens no Brasil, depois do rompimento da barragem de Fundão, operada pela Samarco/Vale, que causou 19 mortes em Mariana e derramou 40 milhões de metros cúbicos de lama no Rio Doce. Para o TCU, o DNPM se mostra omisso e conta com estrutura precária para fiscalizar as mineradoras. Em Minas, por exemplo, o órgão tem apenas 20% do quadro de funcionários considerado adequado para os trabalhos de supervisão.
Se o quadro do setor mineratório é alarmante em todo país, o deputado estadual João Vitor Xavier (PSDB) qualifica como “desesperador” o panorama em Minas Gerais. Há três anos, ele tenta emplacar a CPI da Mineração na Assembleia do Estado. “Não estou dizendo que poderemos ter novas rupturas de barragens em Minas Gerais. Por tudo que vi, acompanhei e estudei, eu não tenho dúvidas de isso acontecerá”, prenunciou Xavier no plenário em julho do ano passado. Na ocasião, o projeto de lei apresentado pelo deputado para endurecer as regras de concessão de licença para barragens acabou vetado pela Comissão de Minas e Energia da Assembleia. “O lobby das mineradoras venceu”, diz o parlamentar. “Os modelos de barragem são ultrapassados e oferecem risco ao povo mineiro. Temos centenas de bombas-relógio sobre as cabeças da nossa sociedade.”
Sistemas mais modernos, sustentáveis e seguros de contenção de rejeitos minerais já estão em operação em alguns empreendimentos extrativistas, inclusive da Vale, mas ainda são minoria por custarem mais caro às mineradoras. Órgãos ambientais que ajudaram a formular o projeto de lei na Assembleia consideram que há “negligência continuada” das autoridades ao licenciar barragens que empregam a técnica de montantes, como as que se romperam em Mariana e Brumadinho. Maiores exigências e legislações mais rígidas esbarram em uma narrativa comum estimulada pelas empresas: o risco de se inviabilizar a economia de cidades que dependem da mineração.
É o caso da Samarco. Deputados que ajudaram a vetar o projeto de lei na Assembleia, como Thiago Cota (MDB), argumentam que a regulamentação proposta por Xavier poderia jogar uma pá de cal sobre os planos de recuperação de empresas sancionadas por crimes ambientais e, consequentemente, afetar a geração de empregos. Em audiência pública realizada em março de 2018, deputados debateram o segundo rompimento, num intervalo de duas semanas, do mineroduto da Anglo American, que espalhou 492 toneladas de polpa de minério no Ribeirão Santo Antônio, na Zona da Mata. Por unanimidade, os parlamentares decidiram que, pelo fato de o incidente ter tido menor impacto que o de Mariana, não havia motivos para a interrupção das atividades do grupo britânico por tempo indeterminado. Após receber multa de 72 milhões de reais do Ibama e promover uma inspeção no mineroduto, a Anglo American voltou a operar no fim de dezembro. “Voltamos mais fortes”, dizia o comunicado da empresa, que registrou lucro líquido de mais de 3 bilhões de dólares em 2017.
Em Belo Horizonte, há, desde julho, uma CPI aberta na Câmara Municipal apurando suspeitas de atividade mineira irregular na Serra do Curral. Depois de uma denúncia de ambientalistas, a Empresa de Mineração Pau Branco (Empabra) teve atividades suspensas pela Secretaria de Meio Ambiente. De acordo com vistoria de vereadores que integram a CPI, a companhia explorou minério em uma área quatro vezes maior, equivalente a 550 piscinas olímpicas, que a autorizada pela prefeitura de BH. A empresa nega irregularidades na exploração. “Precisamos rediscutir o papel da mineração em todo o Estado”, afirma Gilson Reis (PCdoB), presidente da CPI, que tem até fevereiro para entregar o relatório final de seus trabalhos. “A legislação ambiental é frágil. Crimes cometidos por empresas como a Vale mostram que as mineradoras agem como querem.”
A Vale é responsável por um projeto de restauração na Serra do Curral, depois de desativar uma mina que operou por três décadas e, além da cratera deixada no costado da montanha, afetou o lençol freático da região. Engenheiros da empresa descartam o risco de rompimento da barragem, que poderia atingir os bairros mais altos da cidade e o Parque das Mangabeiras. Do outro lado da serra, moradores de uma comunidade se mobilizam contra um novo empreendimento de mineração. A Semad avalia um pedido de licenciamento que prevê a extração de 150 milhões de toneladas de minério, que também é alvo de questionamentos na CPI. Ao se contrapor ao projeto, um dos vereadores da comissão evocou os versos do poema Triste Horizonte, de Carlos Drummond de Andrade, em que o poeta mineiro revela sua desilusão com a atividade devastadora nos maciços que deram nome à capital: “Esta serra tem dono. Não mais a natureza a governa”.
O novo rompimento em Brumadinho, o segundo de proporções catastróficas em pouco mais de três anos, obriga os Governos federal e estadual a recalcular a rota prevista para as pastas do meio ambiente. Enquanto o presidente Jair Bolsonaro pretendia atacar uma suposta “indústria da multa” no setor, o governador Romeu Zema pregava a flexibilização de leis ambientais para “não prejudicar o andamento das empresas”. A repercussão do crime socioambiental da Vale ganha contornos dramáticos pela reincidência e o maior número de vítimas em comparação com Mariana. Entre elas, funcionários da companhia, técnicos de manutenção, engenheiros, uma médica e o empresário Márcio Mascarenhas, dono da pousada Nova Estância, que foi destruída pela enxurrada de rejeitos. Seu lugar preferido era a sacada da piscina, de onde apreciava a vista para as montanhas.
Fonte: Elpais