Defensoria do Rio diz que iniciativa do Ministério Público Federal para endurecer penas afetará os mais pobres acusados de crimes comuns e não ajudará no combate ao desvio de dinheiro público
O debate sobre o pacote das “10 medidas contra a corrupção”, proposto pelo Ministério Público Federal, ficou monotemático no plenário da Câmara dos Deputados na quinta-feira (24), quando uma movimentação de parlamentares tentou incluir no texto a anistia ao caixa dois.
A iniciativa, que poderia ajudar políticos acusados de corrupção e lavagem de dinheiro, repercutiu mal e obrigou o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a adiar a votação para terça-feira (29).
O juiz Sergio Moro, que conduz a Operação Lava Jato na 1ª instância da Justiça, e procuradores da mesma força-tarefa criticaram publicamente a manobra. No domingo (27), o presidente Michel Temer, ao lado de Maia e do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), anunciou um acordo contra a anistia ao caixa dois.
Para além desse debate, há um outro confronto na análise das “10 medidas”, no qual os integrantes do Ministério Público Federal, incluindo os que atuam na Lava Jato, estão na posição oposta: a de criticados.
As críticas vêm de entidades que fornecem assistência jurídica à população pobre ou atuam para garantir o direito de defesa, como a Defensoria Pública Estadual do Rio de Janeiro — a mais antiga do país —, o IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), o IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e a AJD (Associação Juízes para a Democracia).
As “10 medidas” têm como espinha dorsal o aumento de penas e a redução de recursos disponíveis para pessoas acusadas de crimes em geral. A proposta se deve à constatação de que muitas operações anticorrupção realizadas no Brasil antes da Lava Jato não resultaram em punições a pessoas poderosas ou ricas, que conseguem contratar bons advogados.
Para as entidades críticas ao pacote do Ministério Público, contudo, o endurecimento penal proposto pelas “10 medidas” não reduzirá a corrupção e atingirá as pessoas mais pobres, sem dinheiro para pagar advogados, acusadas de crimes comuns como furto e roubo.
Na terça-feira (22), durante reunião da comissão especial da Câmara sobre o tema, alguns deputados deram voz a esse receio. “Quem assinou [o projeto], assinou de boa fé, porque queria combater a corrupção. Mas ‘como’ se combate a corrupção? Não podemos deixar que isso seja uma violação ao Estado de Direito”, disse o deputado Ivan Valente (PSOL-SP).
Desde 2012, três novas leis aprimoraram o combate ao desvio de dinheiro público: a Lei Anticorrupção, sobre organização criminosa e sobre lavagem de dinheiro.
A campanha ‘10 medidas em xeque’
A proposta original do Ministério Público reúne vinte projetos de lei. Diversos itens levantaram preocupação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, órgão do governo fluminense que presta assessoria jurídica a quem não tem condições de pagar advogado.
Tal como o Ministério Público Federal fez ao apresentar as “10 medidas”, lançando um site com vídeos e textos explicativos, a Defensoria do Rio de Janeiro também colocou no ar uma campanha, mas com críticas ao projeto, chamada “10 medidas em xeque”. A iniciativa do órgão fluminense recebeu o apoio de diversas entidades civis, entre as quais o IDDD, o IBCCrim e a AJD.
Durante a tramitação na comissão especial da Câmara, o pacote do Ministério Público perdeu alguns trechos e ganhou outros, contemplando parcialmente a Defensoria do Rio e essas entidades. O texto que chegou ao plenário da Casa foi consolidado pelo deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS).
Abaixo estão alguns dos pontos polêmicos das “10 medidas”, e como eles ficaram após a análise da comissão especial da Câmara. O texto ainda pode mudar durante a votação no plenário da Câmara, e inclusive há possibilidade de o projeto original ser retomado. Antes de virar lei, ele precisa ser aprovado pela Câmara, pelo Senado e ser sancionado pelo presidente Michel Temer:
Restrições ao habeas corpus
O habeas corpus é o recurso mais comum utilizado pela defesa em processos criminais. Vale em diversas situações, em todas as instâncias da Justiça, e pode colocar uma pessoa presa em liberdade ou impedir que alguém seja preso.
A PROPOSTA DO MPF
Reduzir as hipóteses de habeas corpus. Exigir que o juiz da instância superior tenha acesso a todo o processo antes de decidir sobre o tema. Proibir que o habeas corpus seja protocolado em um tribunal superior de Brasília antes de ser apreciado pela segunda instância do Estado onde o caso é analisado. O MPF diz que seu objetivo é impedir que esse mecanismo sirva para adiar ou anular processos de forma prematura.
O QUE DIZ A DEFENSORIA DO RIO
As restrições ao habeas corpus farão com que pessoas presas injustamente fiquem mais tempo na prisão e reduzirão as possibilidades de defesa. Emanuel Queiroz, coordenador de defesa criminal da Defensoria do Rio, afirma ao Nexo que esse recurso é hoje muito utilizado porque o processo penal prevê “poucos instrumentos” para a defesa.
COMO ESTÁ HOJE NO TEXTO
O projeto aprovado na comissão especial da Câmara retirou a maioria das restrições ao habeas corpus propostas pelo Ministério Público. Manteve duas inovações: determina que o juiz de segunda instância ouça o Ministério Público antes de conceder habeas corpus que discutam a validade de provas e cria uma nova possibilidade de recurso para a acusação contestar habeas corpus que anulem uma prova. Para o defensor público Emanuel Queiroz, as medidas afetam a “paridade de armas” entre a defesa e a acusação, fortalecendo a Promotoria.
Aumento das penas
O QUE O MPF PROPÕE
Elevar a pena de vários crimes. Nos casos de corrupção passiva, corrupção ativa e peculato (funcionário público se apropriar de dinheiro público), a pena subiria dos atuais 2 a 12 anos para 4 a 12 anos. A alteração na pena mínima impede que o condenado possa requerer o direito de iniciar o cumprimento de pena em regime aberto. A Promotoria também propõe elevar a pena máxima desses crimes a até 25 anos, dependendo do valor envolvido. Como comparação, a pena máxima do homicídio simples é de 20 anos e a do homicídio qualificado (com agravantes, como meio cruel ou dificultação da defesa), de 30 anos.
Os três crimes, peculato, corrupção passiva e corrupção ativa, também passariam a ser considerados hediondos, ampliando o tempo de cumprimento da pena em regime fechado, quando o valor desviado fosse superior a 100 salários mínimos (em 2016, R$ 88 mil).
O QUE DIZ A DEFENSORIA DO RIO
A tese de que prender mais e por mais tempo desestimula a prática de crimes “não encontra respaldo na realidade”. Estudo elaborado pela Defensoria diz que, no Estado do Rio, havia 35.200 presos em fevereiro de 2014 e 50.656 em agosto de 2016 — alta de 44% no período, sem que houvesse redução da criminalidade. “A pena para o tráfico de drogas foi aumentada na metade da década passada, e em vez de diminuir, a ocorrência desse crime aumentou”, diz o defensor público Emanuel Queiroz. A Defensoria também cita que em países europeus como Portugal, Espanha, Alemanha, França e Itália, a pena máxima aplicada para corrupção varia de 10 a 12 anos.
COMO ESTÁ HOJE NO TEXTO
O texto eleva as penas para os crimes de peculato, corrupção passiva e corrupção ativa, como proposto pelo Ministério Público, para de 4 a 12 anos, com agravantes de acordo com o valor envolvido.
As três condutas também passam a ser consideradas crime hediondo, mas somente quando a vantagem ou prejuízo para a administração pública for igual ou superior a dez mil salários mínimos vigentes à época do fato (em 2016, R$ 8,8 milhões).
Tolerância a provas ilícitas
Hoje a lei brasileira não admite o uso de provas ilícitas para condenar alguém por um crime. Uma interceptação telefônica realizada sem ordem judicial, por exemplo, não pode ser incluída em um processo.
A PROPOSTA DO MPF
Autoriza o uso de provas ilícitas em algumas hipóteses, como, por exemplo, quando ela tiver sido obtida por meio de “boa-fé” ou “erro escusável”.
O QUE DIZ A DEFENSORIA DO RIO
A autorização para a obtenção de provas ilícitas no texto é ampla e poderia autorizar que gravações ilegais ou grampos telefônicos não autorizados pela Justiça fossem incluídos como prova. Isso aumentará a chance de arbítrio de autoridades contra pessoas investigadas.
COMO ESTÁ HOJE NO TEXTO
Não serão consideradas provas obtidas por meios ilícitos.
Novo tipo de prisão preventiva
A prisão preventiva é uma das modalidades de prisão antes da condenação. Ela pode ser requerida quando o juiz vê indícios de que a pessoa cometeu o crime e atrapalhará a investigação, continuará ferindo a lei se continuar em liberdade, ou em nome da “garantia da ordem pública”. A prisão preventiva foi muito utilizada pela Lava Jato. Alguns advogados de presos chegaram a acusar Moro de fazer uso desse instrumento para pressionar os detidos a assinarem acordos de delação premiada, o que ele nega.
A PROPOSTA DO MPF
Incluir uma nova modalidade na lei: a prisão preventiva para auxiliar na identificação e localização do produto do crime e assegurar sua devolução.
O QUE DIZ A DEFENSORIA DO RIO
É crítica ao uso de prisões antes da condenação. Segundo a instituição, esse mecanismo é fruto de uma “perspectiva policialesca” que fez com que 41% da população carcerária no Brasil seja hoje de presos provisórios. Para o órgão, há outras medidas mais adequadas para recuperar patrimônio desviado, como bloqueio de contas e arresto de bens. O estudo divulgado pela entidade afirma que a real intenção do Ministério Público com essa nova modalidade de prisão preventiva seria a “restrição de direitos e garantias fundamentais (…) e a ampliação do poder penal do Estado num contexto de fragilização da jovem democracia brasileira”.
COMO ESTÁ HOJE NO TEXTO
A nova modalidade de prisão preventiva foi rejeitada e não está mais no texto.
Aumentar a prescrição
A prescrição é o prazo que o Ministério Público tem para denunciar alguém por um crime e que a Justiça tem para condená-la. Findo esse prazo, a pessoa não pode ser mais punida. Esse período costuma ser proporcional à gravidade do crime — quanto mais grave, maior o prazo.
Essa regra funciona como uma garantia de que as pessoas não serão acusadas ou julgadas por fatos muito antigos, e como um estímulo para que o poder público decida sobre casos criminais com celeridade.
Para a Promotoria, as atuais regras de prescrição seriam “um dos principais fatores de impunidade” nos crimes contra a administração pública, pois criminosos ricos contratam bons advogados que utilizam todos os recursos possíveis para atrasar o julgamento o máximo possível, em busca da prescrição.
A PROPOSTA DO MPF
Mudar diversas regras para tornar a contagem do prazo de prescrição mais rigoroso. Aumentar em um terço o prazo que o Ministério Público tem para denunciar alguém por um crime.
O QUE DIZ A DEFENSORIA DO RIO
Mudar as regras de prescrição de forma geral irá reduzir direitos de todos os cidadãos, “sob a máscara do combate à corrupção”. Para a entidade, a prescrição força o poder público a dar uma “duração razoável” ao processo criminal. Se o caso está demorando muito para ser denunciado ou julgado, o problema seria do sistema de Justiça, que deveria se tornar mais célere, e não do cidadão.
COMO ESTÁ HOJE NO TEXTO
Todas as propostas do Ministério Público sobre prescrição foram mantidas no texto.
Combate à corrupção x punitivismo
O defensor público Emanuel Queiroz, coordenador de Defesa Criminal da Defensoria do Rio, afirma ao Nexo que o Ministério Público, a quem cabe o papel de acusador no sistema de Justiça, estaria aproveitando a onda atual de combate à corrupção para pedir o endurecimento de penas e procedimentos.
Segundo ele, a iniciativa repete um padrão já verificado em outros momentos na história do Brasil: diante de um comoção nacional, se aprova uma lei penal para resolver o problema. Ele é cético quanto à chance de sucesso. “O direito penal não resolve. Esse projeto servirá somente para acalmar a fúria da sociedade”, diz.
O magistrado André Augusto Salvador Bezerra, presidente da Associação Juízes para a Democracia, afirma ao Nexo que o conjunto das “10 medidas” partiria de um pressuposto errado, de que o endurecimento de penas reduzirá a corrupção. Segundo ele, “já se sabe muito bem que mudar a pena não modifica em nada o comportamento de um agente, seja ele público ou particular”.
“O direito penal não é um instrumento inidôneo para resolver problemas históricos e estruturais do país. O caminho para combater a corrupção é mais transparência e mais controle sobre o poder público”
André Augusto Salvador Bezerra
Presidente da Associação Juízes para a Democracia
Para o advogado Renato Marques Martins, diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, o pacote das “10 medidas” foi embrulhado “num nome bonito, comercial, propagandístico”, mas propõe, “sem o cuidado necessário”, alterações em muitas leis e Códigos que terão como resultado o endurecimento penal generalizado. Ele diz ao Nexo que algumas dessas medidas deveriam tramitar em uma comissão que discute a reforma do Código de Processo Penal, já em debate na Câmara.
“Estão querendo aproveitar o sucesso de uma operação policial para empoderar os órgãos públicos de acusação de forma equivocada e sem precedentes”
Renato Martins
Diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa
Cristiano Marrona, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, também defende que alterações nas leis penais sejam discutidas nas comissões já existentes no Congresso sobre o tema. Segundo ele, o modelo adotado nas “10 medidas”, analisadas por uma comissão especial com tramitação rápida, se deve a “um rolo compressor impulsionado pelo populismo punitivo da Lava Jato”.
Legislação do pânico
A prática de aprovar leis penais mais duras em resposta a comoções públicas é chamada por professores de Direito de “legislação do pânico”, ou “legislação de emergência”. Eis alguns exemplos:
1990 — Lei dos Crimes Hediondos (Sequestros de Abílio Diniz e Roberto Medina)
A norma ampliou o período de cumprimento de pena em regime fechado (prisão) de quem fosse condenado por alguns crimes específicos. Foi discutida e aprovada logo após os sequestros dos empresários Abílio Diniz e Roberto Medina, naquele ano. A partir dessa lei, o crime de sequestro passou a ser considerado hediondo.
1994 — Homicídio qualificado vira hediondo (Morte de Daniella Perez)
A lei dos crimes hediondos foi modificada nesse ano para incluir em seu rol o homicídio qualificado. A mudança ocorreu como resultado de clamor popular após o assassinato, em 1992, da atriz Daniella Perez. Daniella estrelava a novela “Corpo e Alma”, na Rede Globo, escrita pela sua mãe, Glória Perez, quando foi morta pelo também ator Guilherme de Pádua e sua então esposa Paula Thomaz.
1998 — Falsificação de medicamento vira hediondo (Pílulas de farinha)
Nesse ano, parte de um lote de teste da pílula anticoncepcional Microvlar, feito de farinha, foi comercializado como medicamento normal. Diversas mulheres engravidaram. Alguns meses depois, o Congresso aprovou uma nova lei incluindo a falsificação e adulteração de medicamentos no rol de crimes hediondos.
2016 — Corrupção pode virar crime hediondo (Operação Lava Jato)
Para o defensor público Emanuel Queiroz, as “10 medidas” se inserem nesse mesmo contexto de “legislação do pânico”. Ele defende outras iniciativas para combater a corrupção, como aplicar as leis já existentes e introduzir melhorias administrativas que aumentem a transparência e o controle das verbas públicas.
Fonte : Nexo Jornal