O julgamento do recurso extraordinário 635.659 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) poderá ser mais um passo no longo caminho para a solução dos problemas gerados pelas drogas. Porém, o julgamento está circunscrito a um ponto objetivo: a possibilidade de descriminalização das drogas para uso pessoal.
Há outras várias circunstâncias que não serão enfrentadas por este julgamento. Vários problemas que não poderão ser solucionados pela manifestação do Supremo. E muitas situações que ainda dependerão de análise caso a caso pelo Judiciário.
Não há previsão de quando o processo será julgado. O relator do caso, ministro Gilmar Mendes, deve liberar o processo para pauta nos próximos dias. O mais provável, conforme sua avaliação, é que o recurso seja decidido no segundo semestre.
Abaixo, cinco pontos que o STF não terá como resolver ao julgar este recurso:
1 – Qual a quantidade de droga limite para caracterizar uso pessoal?
O STF dificilmente conseguirá estabelecer um critério objetivo para definir a quantidade de drogas que uma pessoa pode portar. A caracterização do porte apenas para consumo próprio será analisada pelo juiz caso a caso. Alguém com dois cigarros de maconha dentro de casa será tratado de forma distinta daquele que for flagrado com dois cigarros de maconha na porta de uma escola e com dinheiro trocado (o que pode ser interpretado como produto da venda de drogas). O STF poderia, eventualmente, adentrar neste campo. Mas esta seria uma decisão “quase-legislativa”.
No final de 2014 a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou substitutivo apresentado pelo senador Antonio Carlos Valadares (PSB-SE) (http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2014/10/29/ccj-aprova-criterio-para-definicao-de-trafico-e-uso-medicinal-da-maconha/tablet) a projeto de lei, determinando a quantidade suficiente para consumo individual por cinco dias, a ser calculada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, como delimitador do consumo. Portanto seria uma surpresa, mas o STF poderia avançar nesta direção.
2 – O subjetivismo judicial.
O STF não poderá desfazer um problema facilmente identificável hoje. Pesquisas mostram que as condições sociais podem determinar se o indivíduo é considerado usuário ou traficante pelos juízes. Cor da pele, condição sócio-econômica e grau de instrução parecem ser fatores determinantes.
Por exemplo: uma pessoa presa num bairro nobre de uma capital recebe tratamento penal distinto daquele que é flagrado com a mesma quantidade de drogas num bairro pobre ou numa favela, por exemplo. Enquanto para o primeiro o porte pode ser visto como para uso recreativo, para o outro pode ser interpretado como forma de ganhar a vida. As circunstâncias sociais continuarão a ser levadas em consideração, independentemente de como o STF decidir.
3 – “Os verbos”: o que passa a ser crime e o que é permitido?
A descriminalização, se aprovada pelo STF, atingirá apenas a droga para consumo próprio. Não será possível comprar livremente maconha, por exemplo, ou produzir a droga. A decisão do Supremo tratará exclusivamente da descriminalização daquele que “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. Hoje, a lei 11.343, de 2006, já prevê que o usuário não deve ser preso. Porém, o juiz pode impor penas – que ficam anotadas para efeito de antecedentes criminais – como advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
A decisão do STF a favor da descriminalização não criará no Brasil o cenário atualmente existente em diversos países ou estados dos EUA, onde a comercialização de drogas (especialmente da maconha) é regulada pelo Estado. Viveríamos uma situação que chamo de “hipocrisia da lei”. A lei permite que o indivíduo use, mas criminaliza as possibilidades de adquirir a substância. Como poderá então usar sem contar com o serviço do traficante?
4 – Comprar droga será permitido?
Descriminalizar não é legalizar. Assim, mesmo que o STF decida pela descriminalização para uso pessoal, não enfrentará um ponto levantado por aqueles que defendem a legalização das drogas: a política de Estado de combate às drogas. Muitos consideram que a proibição serve de motor para o tráfico de drogas. E o Estado, para combatê-lo, aloca grande quantidade de recursos humanos e orçamentários. Seria melhor legalizar as drogas e despender esses recursos em outras áreas? Legalizar as drogas aumentaria o consumo? Esta discussão – controversa e complexa – não será feita pelo Supremo. Esse debate cabe primordialmente à sociedade e ao Legislativo.
Além disso, se juridicamente é possível construir a tese da descriminalização do consumo por não haver ofensa a terceiro, para a sociedade poderá parecer difícil entender a mensagem das autoridades sobre o assunto: pode-se usar mas não comprar ou plantar. Como usar, então?
5 – Qual será o impacto nos novos casos de tráfico?
Embora se possa imaginar que essa eventual decisão de descriminalizar o uso vá trazer mais justiça, menos sofrimento e estigma para os consumidores, há riscos caso a decisão não estabeleça parâmetros claros sobre como distinguir usuário e traficante. Juízes mais conservadores, receosos de que usuários não recebam qualquer sanção, podem ser levados a endurecer e ampliar as situações em que se entende ser caso de tráfico. Neste cenário específico, a decisão poderia até ter um efeito contrário ao esperado por alguns ministros do STF favoráveis à descriminalização.
Fonte : http://jota.info/