Apesar de representarem apenas 0,2% da população do DF, os adeptos das religiões com ligações africanas são os que mais sofrem com o preconceito: 59,42% dos crimes de intolerância, somando todas as religiões, têm esses grupos como alvos
“Axé é uma palavra que quer dizer força, luta, vitória”, explica Mãe Marinalva, adepta da umbanda e do candomblé. Ela tem um terreiro em Santa Maria e faz parte da população do Distrito Federal que sofre ataques simplesmente por suas crenças, e “precisa de muito axé” para ter
liberdade na fé. Só 0,2% dos moradores da capital seguem religiões de matrizes afro-brasileiras, segundo dados do último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Porém, um levantamento com dados da delegacia especializada no DF mostrou que 59,42% dos crimes de intolerância, somando todas as religiões, têm esses grupos como alvos (leia Para saber mais). Para especialistas, os números evidenciam o preconceito contra seguidores da umbanda e do candomblé.
O dia a dia de quem escolheu seguir uma religião de matriz africana é de luta. Mãe Marinalva conta que a ignorância traz danos irreparáveis. “Perdi emprego por ser de religião de matriz africana, isso é um absurdo, mostra o preconceito. Somos agredidos até por pessoas que se dizem religiosas, mas não têm escrúpulo nem amor ao próximo. Isso é demonstração de que não nos conhecem”, lamentou. Ela acredita que há muito desconhecimento da população sobre as práticas e tradições da umbanda e do candomblé, o que acaba gerando conflitos. “A Prainha foi depredada, os terreiros estão sofrendo ataques. Ou seja, convivemos com muitas rejeições da sociedade. Às vezes, passa carro de som de igreja de outra religião na frente do meu terreiro só para nos agredir verbalmente, dizendo que ali mora satanás. Quem faz isso são pessoas que leem a Bíblia e não entendem nada”, reclama Mãe Marinalva
A capital tem quase de 400 terreiros, de acordo com a Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília e Entorno. Os locais sagrados acumulam histórias de apedrejamentos, incêndios e outras ações de vandalismo. Em 2015, por exemplo, o templo Axé Oyá Bagan, conhecido como Casa da Mãe Baiana, pegou fogo durante a madrugada. A perícia não identificou causas criminosas, mas a pressão popular, à época, levou à criação da Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual ou Contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin). Hoje, Mãe Baiana comemora os avanços da luta contra a intolerância, mas ainda acredita que Brasília tem muito o que fazer para combater o preconceito.
“A ignorância dói, machuca e mata” Mãe Baiana, dirigente do Axé Oyá Bagan(foto: Alan Rios/CB/D.A Press)
Compreender
“A ignorância dói, machuca e mata”, alerta Mãe Baiana. Ela se transformou em um dos símbolos em defesa das religiões de matrizes afro-brasileiras no DF. Agora, atua na promoção da diversidade religiosa na Subsecretaria de Política de Direitos Humanos e de Igualdade Racial, da Secretaria de Justiça do GDF. “Vivemos em um Estado laico, mas a gente sabe que só é laico para alguns grupos religiosos. Outros, ficam de fora. Temos o racismo religioso, convivemos com a violência religiosa. Isso é muito triste”, avalia.
Para Mãe Baiana, Brasília avançou no enfrentamento da intolerância, principalmente por meio da Coordenação de Diversidade Religiosa, o que mudou um pouco o cenário, até então, caótico. “Entre 2015 e 2017, tivemos muitos crimes de intolerância religiosa no DF. Terreiros foram queimados, alvejados por tiro de revólver calibre 12, pai e mãe de santos agredidos, e isso se espalhou no Brasil.” Apesar da preocupação, ela vê caminhos sendo trilhados e acredita que a conscientização e a educação podem mudar essas situações pouco a pouco.
Minorias
Entidades de religiões afro-brasileiras tentam entender o preconceito que sofrem enquanto batalham para demonstrar aos intolerantes que a fraternidade é símbolo do credo. Rafael Moreira, presidente da Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília e do Entorno, lembra que a depredação da Praça dos Orixás é sintomática. “Temos cinco estátuas danificadas na Prainha há quase três anos. A de Oxalá foi incendiada no ano-novo de 2015 e, até hoje, está queimada. Esse vandalismo deixa claro que nossa religião não é aceita por todos. Mas não entendo o preconceito, porque nós não impomos nada a ninguém, não saímos na rua pregando. Pelo contrário, fazemos ações sociais nas ruas, dando sopa, acolhendo pessoas necessitadas e transmitindo amor”, diz ele.
Os principais problemas enfrentados pelos religiosos são discriminação, difamação e intolerância religiosa. Entre agressores verbais e físicos, surpreende a participação de membros de outras religiões, que deveriam pregar o oposto, segundo Rafael. Para ele, esses ataques são resultado do racismo estrutural do Brasil. “A intolerância ocorre devido ao fato de que as religiões são comandadas por negros, pessoas que passam por outras situações de discriminação. Mas a nossa religião é a que mais acolhe, sejam negros, brancos, LGBTs, heterossexuais, seja lá quem for. Convido qualquer pessoa de bem a conhecer um terreiro de umbanda e de candomblé. Em nenhum momento, ela vai ver as coisas absurdas que são ditas.”
Praça dos Orixás
Conhecida como prainha, o local é patrimônio tombado da capital, mas sofre com o abandono e a depredação. A Secretaria de Cultura informou que “foi realizado um estudo acerca das obras e esculturas na Praça dos Orixás, a fim de identificar as intervenções necessárias no local”. A pasta promete esforços para que as melhorias sejam realizadas na comemoração dos 60 anos de Brasília. Até lá, há planejamentos para valorização do espaço: “O GDF organiza atividades como a realização de uma festa no réveillon, respeitando as tradições da área”, informou a secretaria em nota oficial.
Depoimentos
Pai Adaildo
“Em 2013, fui vítima de discriminação na Câmara de Vereadores do Novo Gama. Eu adotei um garoto de 11 anos, e um vereador se levantou na tribuna para falar que era inadmissível um menor de idade morar em um centro de macumba. Essa é só uma das situações de intolerância, pois também sofremos ataques de outras religiões só por vestirmos nossas roupas tradicionais.”
Pai Eduardo
“Quando tinha sessões no nosso terreiro do Itapoã, a gente ouvia pedras batendo na casa. E o terreiro foi incendiado três meses atrás. Só fiquei com a roupa do corpo.”
Mãe Beth
“Tenho uma associação no meu terreiro e fui ao cartório registrar, mas sofri muito preconceito. Eles não me atenderam bem nem a minha solicitação no dia e nem depois de meses. Eu tive que bater o pé e me impor para lidar com isso.”
Pai César
“Um vizinho nos ameaçou e tentou atirar objetos em mim, me chamando de macumbeiro. Atacaram o carro de uma senhora que frequentava o terreiro, jogaram água em outros amigos que entravam na casa, sem contar as agressões verbais”
Para saber mais
A pesquisa, realizada por Cynthia Cristina de Carvalho, delegada-adjunta da Decrin, utilizou como base crimes registrados na delegacia especializada entre janeiro de 2016, quando foi criada, até setembro de 2019. O levantamento é preliminar, pois levou em conta ocorrências que tiveram no campo “natureza” os termos “discriminação religiosa ou preconceito de raça ou cor” e “injúria preconceituosa”. Outras ocorrências podem ter ficado de fora, por terem sido registradas com outros termos no campo principal. Mas a análise evidencia a discriminação contra religiosos da umbanda e do candomblé, vítimas de 41 crimes no período, de um total de 69. Grupos evangélicos foram os que estiveram em segundo lugar como alvos na quantidade de ocorrências, com 10.
Três perguntas para Cynthia Cristina de Carvalho, delegada-adjunta da Decrin
1. Como funciona a atuação da Decrin?
A Decrin é resultado de pressões da sociedade civil para a existência de uma delegacia especializada na investigação de crimes de intolerância, motivada por um possível incêndio criminoso em um templo de uma religião afrodescendente no Distrito Federal. Embora originalmente a Decrin tenha sido criada em razão de um crime de intolerância religiosa, a delegacia atua em cinco grandes pautas diferentes, abrangendo pessoas em situação de vulnerabilidade. Atendemos idosos, pessoas com deficiência, crimes de intolerância em razão da raça, cor, etnia ou origem, crimes de intolerância em razão da religião e crimes de intolerância em razão da orientação sexual ou identidade de gênero. Por isso, além do trabalho policial no sentido da repressão por meio da investigação dos crimes de intolerância, também temos o dever de atuar na prevenção dessas modalidades delitivas.
2. Quais são os principais crimes de intolerância religiosa? E por que eles ainda ocorrem com frequência?
Nós observamos muito em ocorrências pessoas que querem ofender utilizando termos como macumbeiro, em discussões. Também existem conflitos que envolvem disputas por território, brigas por conta de vestimentas tradicionais. As religiões de origem africana sofrem mais depreciação do que as demais no Distrito Federal. Os templos de umbanda e candomblé, por exemplo, são alvo de muitas reclamações. As pessoas falam que são locais com muito barulho, mas temos templos de outras religiões que também emitem muito som e não são denunciados. Isso é uma forma de preconceito, acredito, como socióloga. Tudo está relacionado a conceitos antigos, lá do tempo da escravidão, quando se tinha a visão de que a população negra era desvalorizada. Desde então, tudo o que está relacionado a essa população vem sendo considerado algo inferior por quem ainda tem uma visão ultrapassada.
3. Há um aumento gradual no número de crimes ou os números se mantém?
Cada vez mais as pessoas sabem que existe uma delegacia especializada para atender conflitos de qualquer tipo de religião, então acaba que o número de ocorrências pode aumentar. Mas temos que levar em consideração vários fatores para analisar isso. Um deles, por exemplo, é que estamos fazendo a um bom tempo um trabalho de conscientização para mostrar que é crime. Antes, as pessoas achavam que as intolerâncias não eram crime e acabavam não registrando boletim de ocorrência. Não quer dizer que a intolerância está aumentando, quer dizer que as pessoas estão procurando a polícia para denunciar. Para diminuir os crimes, devemos fazer um trabalho de desconstrução. É um trabalho do Estado, das escolas, da cultura e da imprensa, por exemplo, que estamos realizando.
Fonte: Correio Braziliense