Carlos Rittl
No dia 11 de julho, um sorridente Michel Temer assinou no Palácio do Planalto o que ele classificou como um dos grandes avanços de seu governo: a conversão em lei da Medida Provisória 759, que, a pretexto de fazer regularização fundiária, anistiava toda a grilagem de terras praticada no Brasil entre 2004 e 2011. Na primeira fileira, assistiam à cerimônia expoentes da bancada ruralista no Congresso, como Nílson Leitão (PSDB-MT), Darcísio Perondi (PMDB-RS) e Luís Carlos Heinze (PP-RS). A cena marcava a nova distribuição do poder em Brasília. E prenunciava uma conta salgada, que a sociedade brasileira pagará por muitos anos.
Naquele momento, ficava mais claro do que nunca que Temer pulara nos braços da Frente Parlamentar da Agropecuária com o objetivo de arrebanhar apoio para salvar seu mandato, ameaçado pela delação da JBS. Deu certo: 21 dias depois, votos ruralistas mantiveram o presidente no cargo.
A FPA, com cerca de 240 deputados, é o maior grupo do Congresso brasileiro. Tem uma agenda bem definida – que envolve a desregulamentação total do mercado de terras – e briga por ela de forma coesa. Na hora do voto, desaparecem as divisões entre os representantes da agricultura empresarial, permeável a compliance, e os parlamentares ligados à pecuária predatória e à grilagem. Foi esse monólito que derrubou o Código Florestal em 2012.
A dependência do Presidente da República em relação à frente já era exacerbada sob Dilma Rousseff. Cresceu exponencialmente após o impeachment, quando um mandatário sem a legitimidade do voto buscou-a no Parlamento. A operação “salva Temer” deu aos ruralistas a chance de “monetizar” mais esse relacionamento. De saída, foi uma fatura que flutua entre R$ 28 bilhões e R$ 32 bilhões em prejuízo para os brasileiros. Esse valor, equivalente ao custo da usina de Belo Monte, é uma estimativa conservadora para o custo das benesses distribuídas aos ruralistas no mês do fico presidencial.
A maior parte do montante, R$ 19 bilhões até 2030, se refere à regularização de propriedades rurais na Amazônia após a promulgação da Lei 13.465 (fruto da conversão da MP 759). O cálculo foi feito pelo Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia). Ele leva em conta o número de propriedades potencialmente beneficiadas e a diferença entre o valor de mercado das terras e o que será cobrado pelo Estado dos candidatos à regularização, que pagarão pelas posses pela tabela do Incra – que pode ser até 90% mais barata por hectare.
Outra medida de peso foi a edição da Medida Provisória do Funrural. Editada na véspera do voto salvador da Câmara, a MP reduz a contribuição patronal para o Fundo de Assistência do Trabalhador Rural de 2,1% para 1,3%, com renúncia fiscal prevista de R$ 8 bilhões a R$ 10 bilhões. Por fim, no varejão do Congresso, Temer ainda liberou R$ 715 milhões em emendas parlamentares, apenas considerando-se deputados ruralistas que votaram em seu favor.
Tudo somado, parece muito dinheiro – e é. Afinal, o governo já vem de um ajuste fiscal traumático e, agora, de um aumento na previsão de déficit fiscal acompanhado de corte de cargos e suspensão de reajuste de servidores. Setores essenciais, como a educação e a pesquisa científica, estão à míngua.
No entanto, esse prejuízo é pequeno perto do que a aliança Temer-ruralistas representa para o país: o desmonte de um arcabouço de salvaguardas socioambientais que existe desde a Constituição de 1988. Este passa por áreas protegidas, terras indígenas e quilombolas e pelo licenciamento ambiental, que pode ser enfraquecido, aumentando o risco de novas tragédias como a de Mariana.
As áreas protegidas de vários tipos são parte importante dessa equação. Esses territórios são vistos pela banda podre do ruralismo como a grande reserva de terras para especulação e expansão agropecuária. Calha de serem também reservatórios importantes de carbono, cuja destruição agravará o aquecimento global, colocando em risco, por sua vez, o próprio agronegócio. No governo Temer, elas vêm sendo atacadas com virulência.
Temer é o primeiro presidente desde a redemocratização que não homologou nenhuma terra indígena e o que propôs o maior corte numa unidade de conservação (a Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará) da história. No mês do fico, o presidente deu um mimo aos aliados ao assinar uma portaria da Advocacia-Geral da União determinando que a administração federal somente reconheça como indígenas as terras ocupadas pelos índios em 1988. A chamada tese do “marco temporal” deixa de reconhecer terras de índios que delas foram expulsos antes de 88, como os guaranis de Mato Grosso do Sul.
A anistia à grilagem e a sinalização de que áreas protegidas não são mais sagradas têm impacto direto nas taxas de desmatamento e, por tabela, nas metas de redução de gases de efeito estufa assumidas pelo Brasil em sua lei doméstica e no Acordo de Paris. Com tudo o que Donald Trump tem dito e feito, suas políticas não têm sido capazes de reverter a trajetória declinante de emissões dos EUA. Temer e seus aliados no Congresso farão isso com o Brasil, transformando o país no único grande emissor na contramão de Paris.
O dano à imagem internacional do Brasil é evidente: doadores como a Noruega e a Alemanha vêm se dando conta de que os bilhões de euros investidos aqui em proteção florestal estão literalmente virando fumaça. A Noruega fez questão de publicizar o corte no Fundo Amazônia. Os alemães recentemente suspenderam as negociações bilaterais com o Brasil sobre cooperação para o desenvolvimento.
Governos e mercados também vão impor cada vez mais barreiras a produtos associados à destruição florestal e a altas emissões, o que será péssimo para o agronegócio brasileiro. A França anunciou recentemente restrições à compra de produtos agrícolas de regiões de desmatamento. E grandes multinacionais, que assumiram em 2014 compromissos no rumo do desmate zero, já demonstram preocupação com a escalada da devastação e da violência no campo no Brasil.
Diante deste quadro, nem que Michel Temer faça, no próximo mês, um discurso digno de Ruy Barbosa na abertura da 72a Assembleia Geral da ONU, conseguirá convencer alguém de que tudo anda bem por aqui. Mais provável que ele encontre acolhida apenas no mandatário americano, que enxergará no presidente do Brasil seu mais novo aliado contra a ação climática.
Carlos Rittl é secretario-executivo do Observatório do Clima, uma rede de 41 organizações da sociedade civil. Este artigo foi publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 21 de agosto de 2017