Na praia de Itapuama, em Cabo de Santo Agostinho, centenas de voluntários tentam reduzir os danos do misterioso vazamento que já atinge praias de 201 localidades em nove Estados
Paulo Vitor não hesita em mergulhar na água para tentar retirar o petróleo que está submerso. Mas esta é apenas uma das muitas tarefas que mobilizam os voluntários, que vieram de várias cidades da região. Qualquer pessoa pode chegar e ajudar. Protegida com luvas, botas e máscara (conforme determinam as instruções difundidas por ONGs e pela Prefeitura), Patrícia Henry tenta retirar com uma espátula a substância preta que ficou incrustada nas pedras da praia. “Como o óleo está muito grosso, se alguém não tirar, não vai sair das pedras. Ontem, retiraram uma tartaruga que se debatia. O pessoal teve que cavar com a unha para retirar o óleo“, conta esta engenheira civil, de 27 anos. “Estou tentando me dedicar àquilo que minha ferramenta me permite fazer, mas o óleo é bem espesso. Ele gruda, entra em qualquer buraquinho. Imagina como está nos corais dentro mar… Tem coisas que não dá para retirar”, lamenta a produtora audiovisual Maíra Lisboa, que trouxe água e duas pás de casa.
Enquanto conversa, forma com as mãos, devidamente protegidas por luvas, uma pequena bola preta com o óleo que conseguiu retirar das rochas. “Infelizmente já aconteceu e parecem não estar se importando muito. Como não temos ajuda do Governo, juntamos o que temos. É uma autogestão mesmo. Todo mundo está vindo, aprendendo e tentando ver qual é a maneira de fazer, e ajudando no que puder”, explica. Seu desabafo parece refletir o sentimento de boa parte das pessoas presentes no mutirão: o de que o poder público como um todo falhou. Identificado há cerca de dois meses, o petróleo se espalhou ao longo de mais de 2.200 quilômetros de costa, entre o Maranhão e a Bahia, sem que as autoridades exibissem um algum tipo de plano detalhado de contenção.
Na praia de Itapuama —assim como em muitas outras da região— soldados se misturavam com voluntários que atuavam por conta própria, agindo no que fosse preciso, de acordo com a demanda do momento. Não havia comando central. Muitos foram ao local mobilizados por grupos de WhatsApp, abertos para monitorar o desastre na região, ou por iniciativas de ONGs como Xô Plástico ou Pernambuco Sem Lixo. A rede de solidariedade se expandiu em vários setores da sociedade: uma rede de supermercados, a Ferreira Costa, doou todo seu estoque de luvas e botas para ajudar nas ações de limpeza, uma empresa de pedágio da região isentou os voluntários que precisavam passar com seus veículos, pousadas ofereceram quartos para quem precisasse ficar na região pelos próximos dias, psicólogos começaram a se organizar para atender a população local afetada pelo desastre… “As pessoas que vivem nas praias menos assistidas estão há dias expostas, movidas pela emoção, pelo sentimento de pertencimento no lugar, botando a mão no óleo. Nosso papel é dar minimamente um aparato. Por isso, nossa prioridade vem sendo dar equipamento de proteção individual, por meio de uma campanha de arrecadação que estamos fazendo”, conta a engenheira de pesca Lica Sousa, da organização Maracuípe Vive.
Além de luvas, botas e máscaras, o grupo recolheu água e alimentos em vários pontos de coleta para distribuir para os voluntários. “Fazemos essa logística dos alimentos até as praias, mas também preparamos os sanduíches, distribuímos água… O pessoal aqui às vezes não tem noção de que está com fome e sede e precisa se hidratar”, conta a estudante Camille Azevedo, de 24 anos. “Mas tem mais pessoas que materiais. O poder público não está à frente disso. Tem várias pessoas descalças, de chinelo, pelo desespero de não deixar isso acontecer… Se não fosse a população civil, ainda haveria óleo nas praias”, prossegue ela, que também participa do mutirão pela Maracuípe Vive.
As críticas de especialistas e ONGs se centram, sobretudo, no presidente Jair Bolsonaro (PSL) e no ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles (NOVO). O Governo Federal assegura estar fazendo seu trabalho desde setembro, mas vinha sendo cobrado pela ativação do Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Água. Previsto em decreto assinado em 2013, o plano prevê uma resposta organizada e coordenada para esse tipo de desastre, envolvendo ministérios, estados, municípios, Exército, Marinha, Ibama, entre outros órgãos e entidades. Na última sexta-feira, 18 de outubro, procuradores do Ministério Público Federal que atuam em nove Estados nordestinos entraram com uma ação contra a União afirmando que o Governo Bolsonaro vem sendo omisso e pedindo que a Justiça o obrigasse a acionar em 24 horas o plano. “O Ministério do Meio Ambiente é a autoridade máxima na condução dos trabalhos, de acordo com o plano. Mas a sensação é de que falta Governo, falta liderança. Em emergências desse tipo é preciso tornar tudo absolutamente público e transparente. A população pode e deve ajudar, mas deve ser orientada a isso”, opinou, em entrevista ao EL PAÍS, a ex-presidenta do Ibama Suely Vaz de Araújo.
Salles afirmou que o Plano de Contingência já havia sido acionado em setembro e que o Governo já retirou 900 toneladas de petróleo do Nordeste. Mas de acordo com um ofício enviado à Casa Civil e divulgado nesta terça pelo jornal Estado de S. Paulo, Meio Ambiente só acionou formalmente o plano em 11 de outubro, 41 dias depois de as primeiras manchas aparecerem no litoral nordestino. Entre outros erros apontados por especialistas, a Administração Federal extinguiu conselhos e entidades da sociedade civil que formam parte da estrutura organizacional prevista pelo plano.
Ainda não está claro quem foi o responsável pelo derramamento do petróleo e pouco se sabe sobre sua origem. Pesquisadores do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia, em parceria com a Universidade Federal de Sergipe e a Universidade Estadual de Feira de Santana, analisaram amostras coletadas do litoral nordestino. A conclusão é de que o óleo tem origem venezuelana, por suas características. Mas isso não significa que tenha necessariamente vazado de embarcações do país vizinho latino-americano: segundo afirmou nesta terça-feira o comandante da Marinha do Brasil, o almirante Ilques Barbosa Júnior, a maior probabilidade é de que tenha saído de um navio que operava de forma irregular.
A Marinha é um dos órgãos que, junto ao Ibama, vem atuando desde o início da contaminação, coordenando as ações —ainda que, segundo especialistas, fora do previsto no Plano de Contingência. O Exército também foi acionado nesta segunda-feira pelo presidente em exercício, Hamilton Mourão. Ambas as forças estavam presentes em Itapuama nesta terça-feira. Tratores e funcionários da Prefeitura de Cabo de Santo Agostinho retiravam centenas de sacos cheios de óleo, enquanto uma ambulância do Sumur atendia os voluntários que apresentavam náuseas, ardência na pele ou algum outro tipo de reação pelo contato com a substância. Contudo, não se via na praia nenhum tipo de coordenação ou liderança de algum desses órgãos do poder público. Oficialmente o Exército afirma que “todo o efetivo da 10ª Brigada de Infantaria Motorizada está disponível”, e que vem sendo empregados equipamentos como “botinas de borracha, óculos de sol, luvas de borracha e máscaras”, segundo uma nota enviada ao EL PAÍS pelo Comando Militar do Nordeste.
“Nunca vi tanta gente aqui”, afirma Genilson Nunes, pescador e surfista, que mora em Itapuama desde que nasceu, há 39 anos. Ele está ajudando nos trabalhos “desde 16h de domingo”. Nunca havia visto algo do tipo. “A comunidade e o pessoal de fora está ajudando muito”, conta ele. “Hoje está uma maravilha, mas ontem parecia que havia lama, que nem a de Minas Gerais”, prossegue, em referência a outro desastre ambiental recente: o rompimento da barragem em Brumadinho. Como os moradores da pequena cidade mineira, teme perder seu sustento no futuro. “É claro que fico com medo. A gente vive de pesca. Não tem uma faculdade de medicina, nem nada. Esses caras que fizeram isso… É um crime”.