Qual o papel de uma Corte Suprema em uma democracia? No geral as cortes constitucionais são responsáveis pela guarda da Constituição, em tese seriam a última instância a se pronunciar em torno de conflitos sobre o nosso pacto social. A primeira grande Corte neste sentido é a norte-americana, idealizada sob os auspícios do século XVIII após a independência inglesa. Nesse período o Judiciário não passava de um apêndice do Poder Executivo, a idealização da Supreme Court nos Estados Unidos foi o precedente para a criação das diversas variações de tribunais constitucionais que temos hoje espalhados pelas democracia ocidentais. Vale a pena ressaltar que só há este tipo de desenho institucional em uma democracia.
No caso norte-americano, seguindo os ensinamentos de Montesquieu, os federalistas aperfeiçoaram os instrumentos de controle mútuo entre os poderes. A ideia central era que as inovações propostas gerassem uma maior centralização do poder, ou seja, a passagem de uma confederação para uma federação. Por outra via, podemos dizer que essas alterações foram cruciais para o fortalecimento da supremacia constitucional em detrimento da supremacia parlamentar que à época reinava. Do ponto de vista prático, a intenção era que as instituições de veto estabelecidas no famoso congresso de Filadélfia (Tribunal Constitucional, veto presidencial e o Senado) atuassem como barreiras de contenção ao ímpeto do facciosismo e a uma possível ditadura da maioria.
A Supremo Tribunal Federal é uma dessas derivações. A sua gênese se dá no final do século XIX com a Constituição promulgada em 24 de fevereiro de 1891, que instituiu o controle da constitucionalidade das leis, dedicou ao Supremo Tribunal Federal os artigos 55 a 59. Do ponto de vista técnico o STF passava a exercer a função de pesos e contrapesos da infante República. De lá pra cá muita coisa mudou.
O Judiciário no Brasil foi amplamente beneficiado nos múltiplos jogos de barganha ocorridos durante o processo constituinte (como mostra o gráfico ao lado, que vai da Primeira República ao Governo Dilma Rousseff). Basicamente todo o funcionamento do sistema judicial foi constitucionalizado, o que torna qualquer tipo de mudança uma missão impossível. Só para se ter uma ideia, nos Estados Unidos as leis que regulam o funcionamento do Judiciário são leis ordinárias, cabendo alteração por maioria simples no Congresso, no Brasil uma tentativa de mudança similar necessitaria de uma emenda constitucional que ainda estaria passível de veto pelo próprio STF.
A própria Constituição fruto deste processo terminou por ser um elemento de empowerment deste Judiciário que nascia na alvorada da Nova República. Ao constitucionalizar grande parte das barganhas dos mais diferenciados setores da sociedade se escancarou uma porta de entrada para o Judiciário, que se tornou um nobre convidado no baile decisório entre Executivo e Legislativo. Em alguns temas, como por exemplo, toda a regulação da política e do funcionamento do Poder Judiciário (incluindo aqui toda a família Judiciária) o STF se tornou uma espécie de terceira câmara legislativa especializada, cabendo a este a última palavra e não ao Parlamento.
A força do Judiciário também se caracteriza por um certo elitismo decisório, o sistema processual permite que exista uma certa proeminência dos tribunais sobre as decisão da primeira instância, a primeira vista isto pode parecer normal, pelo menos no geral, mas quando comparamos com os Estados Unidos os números dão uma precisa noção do que acontece. No Brasil, de cada sete decisões da primeira instância uma é reformada por algum tribunal, nos EUA de cada 300 decisões da primeira instância uma é reformada. Dentre todos os tribunais brasileiros nenhum tem mais prestigio e poder do que o STF, mesmo comparando com outros tribunais de outros países o STF é realmente um destaque, ele é o senhor do controle de constitucionalidade, regula por força recursal todo o direito positivo, dá a última palavra também em questões eleitorais, julga penalmente, através do “foro privilegiado”, diversas autoridades do mundo político e ainda tutela o Conselho Nacional de Justiça, pois cabe ao STF revisão dos seus atos.
O resultado desse arcabouço institucional constitucionalmente assentado não poderia ser diferente. Hoje, o Supremo Tribunal Federal exerce o papel de protagonista em relação não apenas aos temas acima relatados, mas também quando se porta como garantidor de procedimentos. O impeachment foi um exemplo: com a Lei 1.079 de 1950 entrando em choque com a Constituição e com os Regimentos Internos da Câmara e do Senado, coube à nossa Suprema Corte definir qual seria o rito utilizado, sob pena da judicialização do impedimento e anulação do procedimento.
Funcionando em última instância como um controlador dos demais controles, indagamos: quem controla o controlador? Cientistas políticos buscam respondê-la, mas não é tarefa simples. Após o ponto de não retorno em 1988 (consolidação dos poderes do STF), qualquer alteração institucional que o STF venha a sofrer por parte dos demais poderes, é o próprio STF quem diz o que pode ser ou não alterado. Isso lhe confere demasiado poder, cuja autorrestrição é a única forma de limitar sua atuação. Ou seja, é o próprio Supremo quem limita os próprios atos.
A literatura em ciência política vem evidenciando que a fragmentação partidária é uma das principais causas de aumento do poder judicial. A tese de Doutorado O Silêncio dos Incumbentes: fragmentação partidária e empoderamento judicial no Brasil (de autoria de Leon Victor), demonstrou essa causalidade ao longo do tempo, como evidenciado no gráfico aqui colocado. Esse empoderamento confere ao STF a posição de controlador dos controladores, a última palavra sobre quaisquer atos normativos (desde que judicializados). Dessa forma, o tribunal age quando e como quer, ele tem o controle do tempo e da agenda, fenômeno amplamente estudados em modelos que analisam as decisões como sendo estratégias políticas e escolhas alheias ao Direito. E não poderia ser diferente, já que ele é um dos três poderes políticos da República.
Fonte : El País