O sapateiro carioca José Luiz Rodrigues, de 53 anos, fez questão, pela primeira vez, de apertar o “branco” quando foi votar no domingo. “Não confio em ninguém. O político só saber roubar e aumentar impostos. Minha vida, no final de contas, ninguém muda, quem muda é Deus. Eu continuo aqui de 8h às 18h, com trombose na perna e ainda tendo que pagar um plano de saúde”, reclama. Não houve programa eleitoral, candidato nem bispo, que o convencesse do contrário. “Já me arrependi de votar em Lula, em Dilma e em todos”, encerra. No mesmo pedaço de rua onde José Luiz trabalha, no bairro do Flamengo, um garçom, um porteiro e um lojista também votaram em ninguém nessas eleições municipais.
João Pedro de Paula, empreendedor de 27 anos, votou nulo pela primeira vez nesta eleição. “A pergunta que o eleitor responde no primeiro turno é ‘quem você gostaria que fosse o prefeito da cidade?’, e eu não apoio nenhum dos candidatos. Votei em Marcelo Freixo em 2012, mas hoje estou decepcionado com o PSOL e o tipo de diálogo que estabeleceu com a sociedade. Agora, no segundo turno, a pergunta ao eleitor é diferente e você escolhe quem prefere que seja o prefeito entre duas opções, e, aí sim, votarei no Freixo.”
Como o sapateiro, mais de 204.100 pessoas (5,5% dos eleitores) votaram em branco no Rio e, como o empreendedor, outras 473.324 pessoas (12,76%) anularam seu voto. A soma dos dois percentuais representa um alta de 35% em relação as eleições municipais de 2012, e favoreceu para tornar o Rio a capital do não voto nessas eleições. A soma dos votos brancos e nulos e a abstenção, que foi de 24,28%, superou os votos conquistados pelos vencedores do primeiro turno, Marcelo Crivella (PRB) e Marcelo Freixo (PSOL) juntos.
Em São Paulo, João Doria teve uma vitória avassaladora, uma conquista sem precedentes com mais de três milhões de votos. Mas também aqui, os que não votaram em nenhum dos candidatos superaram os eleitores do empresário. Em uma tendência similar à do Rio, os votos brancos e nulos aumentaram 30% de 2012 para cá até 16,64%, enquanto a abstenção cresceu 18% se situando em 21,84% (a média nacional foi de 17,58%). São percentuais que não se viam desde 1996. Os dados chamaram a atenção até do presidente Michel Temer, que viu no resultado do pleito um recado. “É um sentimento de decepção com toda a classe política”, afirmou durante encontro com a imprensa em Buenos Aires.
Jairo Nicolau, cientista político e especialista em sistemas eleitorais, acredita que o alto número de abstenções confirma, na verdade, que o voto obrigatório não tem mais o peso que tinha sobre as pessoas e que as punições não são suficientes para levar o eleitor às urnas. “Mas não necessariamente trata-se de desinteresse ou um voto de protesto. Há idosos e analfabetos que têm o voto facultativo, há pessoas sem dinheiro para pegar um ônibus e ir a votar, registros eleitorais desatualizados que ainda contemplam falecidos”, diz ele. Para ele, os votos brancos e nulos são sim um sinal de descontentamento. “É um sentimento que começamos a ver em 2013, veio mais forte em 2015 e 2016 com as denúncias de corrupção e a crise do PT, que era uma espécie de reserva moral desse sistema político, e refletiu-se nessa eleição. É claro que aumentou o pessimismo das pessoas. Mas o que mais me assustou nessa eleição não foi uma pesquisa, senão a conversa com pessoas mais pobres que transformaram a insatisfação no não voto. É uma surpresa” , afirma Nicolau.
O elevado número de votos brancos e nulos e as abstenções viu-se em outras grandes capitais. Além de no Rio e em São Paulo, em Belo Horizonte (MG), Porto Alegre (RS), Curitiba (PR), Belém (PA), Cuiabá (MT), Campo Grande (MS) e Aracaju (SE) os votos brancos e nulos somados às abstenções venceram o primeiro turno nestas eleições, segundo um levantamento da EBC. Em Curitiba, por exemplo, o percentual de votos brancos e nulos aumentou 61,36% chegando a 13,78%. As abstenções quase dobraram (9,09% em 2012, a 16,6% nesta eleição). A soma de todos eles (360.348 votos) supera também a do candidato mais votado. Em Porto Alegre, outro exemplo, foram 15,8% de votos brancos e nulos frente aos 9,4% de 2012.
Para o presidente do Tribunal Superior eleitoral, Gilmar Mendes, o número de votos brancos e nulos nas grandes capitais (ainda não foi fechado um índice nacional) não são importantes. “Os votos brancos e nulos não nos parecem relevantes. Na nossa avaliação, é mais um voto de desinformação do que de protesto”, declarou. Segundo Mendes, o índice de abstenção deste ano (17,58%) é baixo em relação às eleições presidenciais de 2014, quando 20% dos eleitores brasileiros não votaram. Nas eleições municipais de 2012, 16,41% do eleitorado não foi às urnas.
As razões que explicam a abstenção e a escolha do voto branco e nulo não se restringe apenas pela insatisfação política do eleitor, afirma a cientista política Alessandra Aldé, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. “Além do fenômeno anti-político que vivemos, o timing dessa eleição foi particularmente infeliz: o desgaste era muito forte depois do longo processo de impeachment. A opinião publica funciona em ondas de interesses e agora há um desgaste do eleitor que está envolvido em discussões políticas desde a eleição de 2014”, afirma Aldé. “As novas regras eleitorais recortaram também o tempo de campanha, tirando visibilidade dos candidatos e o eleitor teve menos tempo de se interessar ao longo do processo”, completa.
Ativismo do voto nulo
Fora o desgosto pelos candidatos, o ativismo do voto nulo também esteve presente nesta eleição. No Largo do Machado, no bairro do Catete, enquanto meia dúzia de militantes de Marcelo Freixo balançava bandeiras, um grupo ocupava a praça. “Não vote, lute”, clamavam em defesa do boicote eleitoral como negação do sistema.
O designer Tony de Marco, de 52 anos, optou por esse “voto de protesto”, como ele o chama, em São Paulo. Ele vota nulo desde 1986. “Militei no movimento estudantil de 1980 até 1986. Fiz muita campanha, acreditava que fazia a diferença. Com o tempo vi que a estrutura é muito engessada e a eleição, do jeito como se apresenta, é uma ilusão de participação. Acho que as pessoas superestimam a democracia, acham que basta votar no ‘menos ruim’ para tudo ir melhorando. Mas as forças que movem as eleições são muito maiores”, explica.
O que faria ele votar de novo passa por uma mudança de dentro para fora do sistema eleitoral. “Desde as regras para a criação de um partido, passando pelas absurdas regras eleitorais que regem coligações e votações proporcionais (que sempre puxam eleitos totalmente desproporcionais) até chegar na dificílima compreensão de que é preciso participar o tempo todo das decisões dos partidos, e não só de quatro em quatro anos”. Uma reforma eleitoral completa – e até utópica – num país onde ainda não é prioridade nem a reforma política.
Fonte :El Pais