O cenário político desenhado para os próximos anos não deixa dúvida: viveremos, daqui por diante, cada vez mais graves ameaças de retrocessos em praticamente todos os temas relacionados aos direitos humanos, com especial destaque aos direitos socioambientais.
Direitos conquistados por indígenas e comunidades tradicionais, notadamente sobre as terras necessárias para a sua sobrevivência física e cultural, são objeto de inúmeras proposições legislativas destinadas a alijá-los. São propostas que versam sobre uma infinidade de temas, tais como alterações constitucionais voltadas a petrificar a demarcação de territórios tradicionais, a anular Terras Indígenas (TIs) já demarcadas, homologadas e implantadas, bem como a permitir o desenvolvimento de atividades minerárias, hidrelétricas e agropecuárias em TIs, apenas para citar algumas.
Para se ter uma ideia do grau de ameaça aos direitos indígenas e de populações tradicionais, basta verificar que a primeira reunião da Frente Parlamentar da Agropecuária da Câmara dos Deputados, no dia 3/2, definiu estratégias sobre quatro temas principais, sendo três deles diretamente relacionados a esses direitos: a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.º 215-A/2000 e apensos (que visam, entre outras medidas, transferir, do Poder Executivo para o Poder Legislativo, a competência para a demarcação de TIs, unidades de conservação (UCs) e territórios quilombolas; o Projeto de Lei (PL) n.º 7.735/2014 (que trata da exploração do patrimônio genético e dos conhecimentos tradicionais) e a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a Fundação Nacional do Índio (Funai).
A ofensiva contra os direitos territoriais estende-se ao direito fundamental de toda a coletividade de viver em um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Após desfigurar por completo o Código Florestal, o maior retrocesso legislativo ambiental da história do País, com consequências desastrosas para qualidade e quantidade de água, para a produção de energia (já que o Brasil tem a energia hidrelétrica como base de sua matriz energética) e o combate às mudanças climáticas, a bancada do agronegócio e suas aliadas (as bancadas evangélica, da mineração, da construção civil, da bala, dos meios de comunicação etc.) seguem sua ofensiva contra as UCs, com projetos tendentes a anular ou reduzir os limites de algumas dessas áreas e permitir a extração de minérios, a ampliação de latifúndios e a construção de mais hidrelétricas na Amazônia.
Trata-se da expansão das fronteiras de exploração dos recursos naturais brasileiros, em boa parte voltados para atender ao mercado internacional, em detrimento da qualidade de vida da população brasileira e dos direitos das populações vulneráveis, naquilo que alguns denominam de neocolonialismo.
Agenda de retrocessos
Longe de ser exclusividade dos direitos socioambientais, a agenda de retrocessos nos direitos humanos, estrategicamente arquitetada pelo Congresso conservador, é de assustar até os mais desavisados. São ameaças aos direitos urbanísticos, trabalhistas, à igualdade racial, à educação, à saúde, à justiça social, à igualdade de gênero, à liberdade sexual, à redução das desigualdades no sistema criminal e outros tantos. Tudo para atender aos interesses econômicos de empresas privadas financiadoras de campanhas eleitorais ou aos preceitos do fundamentalismo religioso.
A frágil democracia brasileira vive período decisivo para o seu futuro. É que a reforma política, tão almejada pela sociedade brasileira, muito provavelmente não será reforma, mas, ao contrário, destinada a estabelecer um conjunto de medidas que, na prática, poderá ampliar ainda mais o controle da política brasileira pelo poder privado. Logo no início do ano legislativo, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), o novo presidente da Câmara dos Deputados, apressou-se em permitir a criação da Comissão Especial da PEC n.º 352/2013, cujo presidente será o deputado Rodrigo Maia (DEM/RJ) e o relator, o Deputado Marcelo Costa (PMDB-PI). A proposição atenta contra os pleitos dos movimentos sociais, unidos em torno da Plataforma pela Reforma do Sistema Político. Não parece ser obra do acaso o fato de o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, seguir impedindo a continuidade do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o financiamento privado de campanhas, ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil e que já conta com maioria de votos pela inconstitucionalidade. Em breve, os financiadores de campanha poderão celebrar o aniversário de um ano de paralização do processo, promovido pelo pedido de vistas de Mendes.
Para piorar, o governo federal vive dias de tensão. A nova Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Petrobrás assombra o Palácio do Planalto com a hipótese do impeachment e o pressiona ainda mais para a direita, subordinando-o aos interesses políticos do PMDB, eminentemente retrógrados, sempre na contramão de direitos humanos. Some-se a isso o fato de que a reforma dos ministérios pela presidente Dilma Rousseff não sinaliza qualquer mudança no direcionamento das políticas socioambientais, subordinadas a agendas negativas desde seu primeiro mandato, mantendo e acrescentando figuras polêmicas e adversas em várias pastas importantes. Um dos reflexos desse cenário certamente será a continuidade da inércia estatal na efetivação de direitos socioambientais, como se verifica com a paralisação da oficialização de TIs e UCs.
Apesar de todos esses pesares, em tempos de retrocesso, devemos ser capazes de olhar adiante, para além da onda pessimista, e nos espelharmos em mobilizações que têm sido responsáveis por frear o ímpeto conservador-fundamentalista. Os três exemplos de mobilizações sociais mais recentes nos mostram que é possível barrar medidas violadoras dos direitos básicos dos brasileiros, garantidos pela Constituição. A primeira, ocorrida no final do ano passado e que segue ativa, reunindo diversas organizações indígenas, indigenistas e socioambientais, conseguiu o que parecia impossível: evitar a aprovação da PEC n.º 215-A/2000 pela Comissão Especial na Câmara dos Deputados, composta majoritariamente por Deputados ligados à bancada do agronegócio (saiba mais). A segunda, também em curso, coordenada pelo APP-Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná, vêm obtendo sucesso na luta contra o que consideram ser um desmonte da educação pública no Estado (leia mais). A terceira é de inspirar a todos e deve servir de lição para as próximas lutas. Contra o PL n.º 7.735/2014, mais de 80 movimentos sociais, organizações e redes da sociedade civil de todo o Brasil uniram-se pela primeira vez para impedir retrocessos impostos pelo governo federal e pelas indústrias farmacêutica, de cosméticos e do agronegócio (leia aqui).
Em defesa da Constituição cidadã, dos direitos sociais, políticos e socioambientais, é preciso que a sociedade se una em prol do Estado Democrático de Direito, deixando de lado, pelo menos por ora, suas eventuais rusgas ideológicas. Ou nos empenhamos juntos nessa luta, ou viveremos tempos sombrios de retrocessos. Mobilizem-se!