Em mais um pronunciamento de rádio e tv, Bolsonaro vestiu um modelinho de conciliação para falar à nação sobre a crise causada pela pandemia do coronavírus. Contrariando apostas em mais um enfrentamento, o capitão passou ao largo da questão do isolamento social, reconheceu que o país vive “o maior desafio de nossa geração” e ao final até acenou com uma bandeira branca ao parlamento, aos governadores, prefeitos, ao judiciário e à toda sociedade, a quem propôs “um pacto pela preservação da vida e dos empregos.”
Para quem no discurso anterior desdenhou do potencial de destruição da doença, tratando-a como uma gripezinha e aquiescendo que todos um dia hão de morrer, dizer que “cada vida importa” é de fato um dado assombroso. Mas essa meia volta, volver! não veio por acaso. A cada palavra do discurso dá para sentir o bafo da tutela dos militares do Planalto, a quem coube oxigenar a mente perturbada do capitão com o toque de que ou ele dava um passo atrás ou era game over. Até Trump já havia aderido à “histeria” da mídia.
O cerco se fechava. Líderes da Câmara e Senado já haviam se pronunciado a favor do isolamento social proposto por Mandetta, assim como Moro e Guedes – ainda que este falasse como “cidadão.” O STF – e outras instâncias do Judiciário – não só desautorizou o capitão como mandou barrar a veiculação do seu chamamento publicitário “O Brasil Não Pode Parar”. O ministro Marco Aurélio, por sua vez, acatou queixa-crime contra o presidente e a enviou para a Procuradoria Geral da União, emitindo sinal que a batata do capitão estava na assadeira. Acabou convencido de que já não tinha mais cacife para replicar a aposta.
Por fim, nós, lideranças de partidos de oposição, fomos a público pedir abertamente que Bolsonaro renunciasse à presidência. Até as redes sociais, terreno em que costuma pontificar, disseminando fake news e golpes contra inimigos atrás de cada porta, decidiram engrossar o cordão e tirar seus vídeos do ar – por promover a desinformação e contrariar as orientações da OMS.
A expectativa pelo pronunciamento de confronto ganhou força desde a manhã de ontem, quando Bolsonaro voltou a insuflar sua claque do cercadinho do Alvorada contra a imprensa. E depois por distorcer uma fala do diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, tentando primariamente alinhá-la a seu próprio discurso contrário ao confinamento em massa. A manobra logo foi rechaçada oficialmente pela entidade.
No discurso noturno, Bolsonaro voltou a invocar mais uma vez a OMS, ainda que de maneira sublimada, como se ele próprio estivesse em sintonia com as diretrizes da organização. Não estava. Mesmo falando como um boneco de ventríloquo, o capitão deixou nas entrelinhas as suas convicções alucinadas em pelo menos duas passagens. A primeira quando diz que “medidas protetivas devem ser implementadas de forma racional, responsável de coordenada.”
De fato. E é tudo o que ele não faz e jamais fará. A segunda se refere a um suposto esforço de guerra por parte laboratórios químico-farmacêuticos para produção de 1 milhão de comprimidos de cloroquina – droga prescrita para casos de malária e outros males e recomendada pelo ministério da saúde, apenas em caráter experimental, para pessoas internadas em estado gravíssimo pela Covid 19.
Agora notem: prevê-se a produção massiva de uma droga incerta e de risco em 12 dias. Mas a previsão para que se faça chegar os 600 reais de auxílio emergencial às mãos dos mais vulneráveis em não menos que duas semanas –por inapetência do ministério da economia, que não consegue acionar os canais regulares para viabilizar o processo.
A mudança de tom, de qualquer maneira, não deve alterar o panorama geral – serve apenas para abrandar momentaneamente a pressão sobre Mandetta e sua política de combate ao coronavírus. Porque Bolsonaro dificilmente conseguirá movimentar suas peças daqui pra frente. Já se sabe que o país pode perfeitamente andar sem ele.
Isolado, sem base congressual e com apoio da população erodindo, deve continuar pregando no deserto, à margem das decisões políticas. Junto à comunidade internacional, tudo o que conseguiu com a crise foi cristalizar sua condição de pária, agora traduzida pelo título de líder negacionista do corona.
Seu discurso talvez tenha só postergado o fim, já que sua fala não convence ninguém. Tanto que não demorou para que capitão logo voltasse à ativa. Hoje pela manhã, 1º de abril, já compartilhou vídeo denunciando o que seria um suposto desabastecimento no Ceasaminas, de Contagem, na Grande Belo Horizonte, logo desmentido pela imprensa com uma fartura de imagens só comparável com a diversidade de hortifrutis ali presente.
O curioso é que seu discurso tenha recaído justamente em um 31 de março, data talhada para a exaltação de seu movimento-bandeira. Mas já não havia espaço para glorificação da corporação, para ataques à esquerda ou homenagens a ustras. Sobrou mesmo o ruído do panelaço das janelas das capitais como trilha sonora de seu papo furado.