Marcos Camargo*
Há dois anos, precisamente em 5 de novembro de 2015, ocorria o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG). Subitamente, uma avalanche contendo milhões de toneladas de rejeitos de mineração foi despejada sobre o Rio Doce, seus afluentes e comunidades ribeirinhas, especialmente Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira, dentre muitas outras. Os prejuízos sociais e ambientais foram estimados em bilhões de dólares, naquilo que se converteu na mais grave tragédia ambiental brasileira e no maior desastre do gênero na história da mineração mundial.
A catástrofe produziu local de crime com mais de 650 km de extensão ao longo do Rio Doce, além da dispersão dos rejeitos por mais de 36 mil km² no Oceano Atlântico. A grande presença de materiais em suspensão, cujo índice de turbidez resultou milhares de vezes acima do limite legal, reduziu drasticamente a transparência dos rios atingidos, comprometendo a vida aquática e todo o ecossistema a ela ligado. Acima de tudo, vidas humanas se perderam.
O município de Bento Rodrigues foi aniquilado e os impactos do desastre ainda serão sentidos por um longo tempo, possivelmente séculos. Infortúnio ainda maior teria acontecido se o rompimento ocorresse em período noturno, o que certamente ocasionaria número muito maior de óbitos.
Ao se avaliar as causas do desastre, uma pergunta rotineiramente é feita: por que a barragem se rompeu? De acordo com a perícia criminal federal, responsável pela análise científica dos vestígios do crime, danos estruturais na barragem impediram que ela suportasse a pressão dos rejeitos, terminando por ruir.
Mais grave ainda foi a constatação de que tais danos – notadamente falhas nos sistemas de drenagem interna, comprometidos desde 2008 – eram de pleno conhecimento dos técnicos e gestores da mineradora Samarco, responsável pela segurança da estrutura. Portanto, não se parece tratar de algo impossível de ser monitorado e evitado – que, nesse caso, chamar-se-ia “fatalidade”.
O laudo da perícia criminal federal comprovou que, no caso de Fundão, os preceitos mais elementares de segurança de barragens foram sistematicamente desobedecidos ao longo dos sete anos de funcionamento, indicando ter se tratado de uma tragédia anunciada.
Quanto aos impactos futuros do ocorrido, muitas dúvidas ainda pairam no ar. Como decorrência do desastre, pesquisas demonstram a acumulação de metais pesados no meio ambiente, cujos níveis elevados podem provocar sérios danos ao organismo humano, com manifestação de efeitos tóxicos capazes de serem revelados apenas em décadas. Além disso, há importantes questionamentos sobre a defasagem nos parâmetros aplicados ao controle da qualidade das águas e de efluentes industriais no Brasil.
Nesse sentido, a despeito de possuirmos metodologias e equipamentos modernos de análise, a normatização oficial vigente é sabidamente insuficiente para um controle efetivo da carga poluidora, o que permite risco muito maior do que seria aceitável, tanto para o meio ambiente quanto para a saúde da população.
Destaque-se que a Constituição Federal prevê que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. A Carta Magna exige ainda, de forma expressa, que aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado.
O trágico exemplo de Mariana nos mostra, entretanto, que o setor minerário, além dos interesses econômicos, precisa estar muito mais verdadeira e efetivamente comprometido com a questão da conservação ambiental. Foi preciso haver uma catástrofe sem precedentes para que se lançasse um pouco mais de luz a esse tema, ressaltando aspectos imprescindíveis tais como fiscalização efetiva por parte do poder público e responsabilização de culpados.
Por fim, o pensamento filosófico de Emmanuel Levinas já entendia responsabilidade como “responsabilidade pelo outro, por aquilo que não é feito meu, ou por aquilo que nem sequer me importa”. Baseado nessa responsabilidade ética, conclui-se como necessário que todos – e especialmente as grandes mineradoras – passem também a olhar e se importar mais com o outro para que tragédias como essa não voltem a ocorrer.
Não faltam conhecimentos de ciências exatas, geológicas ou biológicas para que nossos recursos naturais sejam extraídos em harmonia com a preservação do meio ambiente; falta, sim, ética. Ética de responsabilidade para com os concidadãos, a sociedade, a natureza e as gerações vindouras de nossos filhos, netos, bisnetos, trinetos etc., que herdarão de nós o país que hoje construímos (ou destruímos).
*Marcos Camargo é perito criminal federal, presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF).
Fonte: Congresso em foco