Quarenta anos de violações aos direitos humanos e trabalhistas, de agressão continua à saúde de toda uma população e de irreparáveis prejuízos ambientais resumem a herança deixada pela empresa francesa Peñarroya Oxide para o povo de Santo Amaro da Purificação, na Bahia.
A cidade do Recôncavo Baiano traz no seu solo, na sua água, na pele de sua gente e nos corpos frágeis e enfermos dos seus recém-nascidos as terríveis consequências de décadas de exploração irresponsável de minério pela Companhia Brasileira de Chumbo (Cobrac), subsidiária da francesa Peñarroya. As vítimas jamais receberam qualquer reparação.
É essa história de profunda injustiça que o Grupo de Trabalho (GT) do Chumbo, criado para investigar a situação de Santo Amaro da Purificação, trouxe à luz no Parlamento brasileiro durante reunião da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) no dia 16 de outubro.
O GT que estuda o caso – e cujo presidente é o deputado federal Roberto de Lucena (PV-SP) – apresentou um relatório detalhado sobre a devastação causada pela Cobrac na cidade, com a negligência solidária das autoridades que deveriam fiscalizar as operações da empresa.
O martírio do povo santamarense começou oficialmente no longínquo ano de 1952 quando a Peñarroya, que se consolidou como gigante do setor no pós-guerra, optou por expandir seus negócios, investindo na exploração das reservas brasileiras de chumbo e outros minérios.
A empresa francesa foi autorizada a funcionar no Brasil por meio do decreto 35.930, de 19 de julho de 1954, que estabelecia uma série de obrigações e responsabilidades que a Peñarroya deveria cumprir para permanecer em atividade no País. Infelizmente para gerações de trabalhadores e seus familiares, a empresa se nega a cumprir com suas responsabilidades.
Por 33 anos, a subsidiária Cobrac contaminou Santo Amaro da Purificação com um passivo ambiental de milhões de toneladas de rejeito e cerca de 300 mil toneladas de escória (mistura de terra com alta concentração de chumbo). O histórico criminoso da exploração de chumbo na cidade é pontuado por episódios de flagrante desrespeito ao meio ambiente e à vida humana.
De acordo com relatos de ex-funcionários da Cobrac e moradores, a empresa operava durante o dia aparentemente seguindo as normas, mas à noite lançava material contaminado no rio Subaé e ainda desligava os filtros da fábrica. A cada dia a cidade amanhecia mais doente.
Mas os trabalhadores que sofriam dores e apresentavam sintomas de doenças crônicas não eram afastados das atividades na fábrica. Desconhecendo a gravidade da situação, alguns prefeitos chegaram a fazer o calçamento da cidade e alguns moradores o reboque de suas casas com a escória de chumbo abandonada após encerramento das atividades.
Calcula-se que cerca de 6 milhões de toneladas de escória de chumbo ficaram espalhados por Santo Amaro da Purificação, o que faz dela a cidade mais contaminada pelo referido minério no mundo. O lençol freático e o solo da cidade permanecem como fontes de contaminação.
Como resultado, a saúde de gerações de santamarenses foi gravemente afetada. Há centenas de casos de saturnismo, doença impiedosa que afina os braços, paralisa as mãos, provoca dores agudas, impotência sexual, e, nas mulheres, leva ao aborto e má formação fetal.
Além do saturnismo, são comuns os casos de câncer, anemia, lesões renais, hipertensão arterial, doenças cerebrovasculares, demência e alterações psicomotoras. São incontáveis os casos de crianças que nascem com deformidades graves que prejudicam seu desenvolvimento.
Pais e filhos, avós e netos, famílias inteiras foram afetadas pelo descarte irregular da Cobrac e até hoje sobrevivem de forma bastante precária – tanto do ponto de vista da saúde, como da sobrevivência econômica, pois poucos foram os que receberam uma irrisória indenização.
De acordo com o relatório do GT, a contaminação por chumbo em Santo Amaro da Purificação prejudicou quase quatro mil trabalhadores nos últimos 40 anos. E cerca de 900 morreram nas últimas décadas em decorrência das graves enfermidades contraídas.
Problema nacional – Durante a investigação do Grupo de Trabalho sobre as ramificações nacionais e internacionais da empresa, foi constatado que a mesma continua em plena atividade em vários pontos do território nacional. E os problemas ambientais e ameaças à saúde pública continuam. Foram detectados passivos socioambientais na região do Vale do Ribeira, região limítrofe entre Paraná e São Paulo, e na cidade de Adrianópolis (PR). O GT identificou que a Cobrac e a Plumbum S.A. – também ligada a Peñarroya – estão em operação em tais localidades.
A pesquisa verificou que as empresas nacionais Plumbum S.A. e a Cobrac continuam operando de acordo com os interesses da empresa francesa. Foram várias sucessões empresariais e convergências corporativas ao longo dos anos, principalmente para dificultar a possibilidade de responsabilização por prejuízos ambientais e à vida humana.
Outro fato relevante levantado pelo Grupo de Trabalho é que a escória de chumbo que antes era apenas rejeito contaminante hoje é um recurso valioso. Mais importante, após várias fusões, a Penãrroya se tornou uma empresa especializada em reciclagem de metais pesados.
Em suma, a empresa responsável pela contaminação em Santo Amaro da Purificação possui a tecnologia e os meios para reciclagem e aproveitamento do resíduo poluente. Além de retirar o rejeito da cidade, a Peñarroya tem capacidade de indenizar as vítimas desta forma.
Reparação – O decreto 35.930 que autorizou a empresa francesa a funcionar no Brasil elenca várias exigências e é claro sobre as responsabilidades da mesma pelo meio ambiente circundante e pela vida dos trabalhadores que estariam empregados nas suas fábricas. Ao vincular a “autorização para funcionamento” a um conjunto de responsabilidades por danos de ordem pública ou privada, de obediência às leis em vigor e futuras, o governo da época perenizou a responsabilidade da Peñarroya por suas atividades no Brasil.
O que se busca agora é a reparação civil e trabalhista, tanto pelo acionamento judicial da empresa, como também da União e do Estado da Bahia, que falharam tanto na fiscalização das atividades em Santo Amaro como também no socorro e amparo social às vítimas. “Mais do que apontar culpados, as vítimas de contaminação por chumbo clamam por reparação, por reconhecimento de que seus direitos como cidadãos e trabalhadores foram e continuam sendo violados. Elas querem justiça”, enfatizou o deputado Roberto de Lucena.
O parlamentar destacou que agora será preciso trabalhar para que haja reparação às vítimas por meio das entidades governamentais e da empresa e que o desejo de todos é que seja viabilizado um acordo extrajudicial para atender as necessidades das vítimas.
Fiscalização e controle – Para garantir que a situação emblemática de Santo Amaro da Purificação não se torne corriqueira no Brasil, o deputado federal Roberto de Lucena defendeu que o Grupo de Trabalho que estudou o caso seja convertido em Proposta de Fiscalização e Controle (PFC).
A PFC nada mais é do que um instrumento de controle do Legislativo sobre o Executivo, cuja finalidade é assegurar eficiência e transparência órgãos governamentais que atendem a população, o que incluí desde Estados inteiros até pequenas comunidades. Com a conversão do GT em PFC, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) poderá fiscalizar diretamente todos os órgãos da administração da União responsáveis por atender a população atingida por contaminação por chumbo, por promover a recuperação ambiental das áreas degradadas e por responsabilizar as empresas.
De acordo com o parlamentar federal, o grupo de fiscalização e controle seria essencial também porque, para além da reparação, providências urgentes e complexas precisam ser tomadas diante da contaminação presente no solo e na água de Santo Amaro da Purificação.
E uma das propostas para resguardar o bem-estar dos moradores é a sua remoção das áreas afetadas. Trata-se de uma medida altamente complexa, mas que não pode ser descartada em razão da gravidade dos problemas de saúde e da escala de degradação ambiental verificados.
“Não podemos encerrar nosso trabalho apenas entregando o relatório final. Devemos ir além e, com base nele, efetivar esse instrumento de fiscalização para garantir que as vítimas de contaminação por chumbo sejam de fato assistidas pelo Estado. Santo Amaro da Purificação é símbolo das consequências nefastas da negligência estatal e da forma cruel com que o Estado abandonou milhares de famílias contaminadas por chumbo no Brasil”, declarou o deputado.
Encaminhamentos – Em seu relatório final o Grupo de Trabalho também elencou uma série de encaminhamentos propostos de acordo com a realidade da população santamarense. São eles:
Tratamento Médico – Reiteração do pedido de instalação de um Centro de Tratamento Especializado para as vítimas de contaminação com chumbo.
Grupo interministerial – Para atender prioritariamente os pleitos da população de Santo Amaro e diagnosticar questões que atingem populações de outras cidades contaminadas, o GT propôs o estabelecimento de um grupo interministerial dedicado exclusivamente à contaminação com chumbo no território brasileiro.
Mutirão previdenciário – O GT recomenda a adoção de um esforço concentrado de servidores das agências de Previdência Social da região para orientar e viabilizar a concessão, de modo célere, de benefício previdenciário a todos os munícipes que preenchem os requisitos legais.
A implantação de um mutirão nesses moldes poderia ser acionada através de Indicação ao Poder Executivo, juntamente com as demais revindicações, e segundo as diretrizes da Carta de Santo Amaro, documento resultante das contribuições do I Simpósio de Atualização Científica de Santo Amaro da Purificação.
Providência – Direito do Trabalho – Também foi proposto pelo Grupo de Trabalho que se requeira judicialmente a documentação dos trabalhadores ainda existente na sede da fábrica da Cobrac, conforme informado pela pesquisadora Luciana Bittencourt Oliveira.
Requerimentos de informações – O GT também propôs que sejam solicitadas ao Ministério do Meio Ambiente as informações e registros do Banco de Dados Nacional sobre Áreas Contaminadas. E que sejam solicitadas informações sobre o andamento das ações de assistência à saúde das vítimas de intoxicação por chumbo, cádmio e outros metais pesados em Santo Amaro da Purificação.