Estudo de cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e do Instituto Max Planck, na Alemanha, mostra que índios modificavam o ambiente e domesticavam plantas antes da chegada dos europeus ao Brasil, contrariando a ideia da passividade desses povos
As árvores da Amazônia estão ajudando pesquisadores a pintar um quadro mais realista da história da região. Se há até muito pouco tempo — de cinco a 10 anos atrás — predominava a ideia de uma floresta intocada antes do século 16, quando os europeus chegaram, novos estudos que se valem de diversas técnicas, inclusive a avaliação botânica, contestam a imagem de populações passivas, que não alteravam o ambiente no qual viviam. Agora, mais um trabalho reforça que os antigos indígenas também transformavam a paisagem para abrir roças no meio do mato.
Em um estudo publicado na revista Plos One, cientistas mostram, por meio da avaliação de anéis de árvores, que há mais de 400 anos os índios domesticavam plantas com o provável objetivo de cultivar alimentos, como a mandioca. O pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Charles R. Clement, um dos autores do artigo, explica que os anéis que se formam no interior dos troncos das árvores, e que podem ser vistos quando elas são cortadas verticalmente, revelam diversas informações sobre os espécimes. A idade e as respostas às variações climáticas são alguns dos dados extraídos dessas marcas. Mas, além disso, é possível inferir que houve transformação da paisagem.
Nas florestas, a concorrência por espaço é grande, observa Clement. Quando os anéis diminuem em largura, ano a ano, isso significa que a árvore não está conseguindo crescer muito, devido à alta competitividade. Por outro lado, se os anéis se expandem é porque os concorrentes foram eliminados ou, ao menos, diminuíram de quantidade. “A árvore pode ter caído naturalmente, por ser velha, ou pode ter sido morta pela queda de um relâmpago”, exemplifica. Esse mesmo processo pode ser atribuído ao homem. “Ao entrar na floresta e derrubar árvores para abrir clareiras e plantar milho ou mandioca, a concorrência diminui”, diz o pesquisador.
El Niño
No estudo, o engenheiro florestal Victor L. Caetano Andrade, primeiro autor do artigo e quem liderou o trabalho, baseou-se nos anéis de castanheiras, importantes fontes de nutriente das populações locais há muito tempo, para investigar se eles estavam expandindo demasiadamente, em um ritmo que não poderia ser explicado apenas por fenômenos naturais. O estudo de anéis em árvores tropicais é uma ferramenta recente na arqueologia, observa.
“Árvores são coisas fantásticas. Elas perduram na paisagem por centenas de anos e respondem às variações climáticas e ambientais do local onde vivem. Por muito tempo, acreditou-se que espécies tropicais não formavam anéis anuais de crescimento”, conta Andrade. Contudo, essa ideia se mostrou equivocada. ‘Na Amazônia, por exemplo, variações anuais no nível dos rios (nas florestas alagáveis) e variações anuais do período das chuvas (nas florestas de terra firme) são gatilhos que possibilitam a formação destes anéis anuais.”
O pesquisador, que fez mestrado no Inpa e, atualmente, cursa pós-doutorado no Instituto Max Planck, Alemanha, explica por que escolheu a castanha-do-Brasil para o estudo. “Certas espécies de árvores são importantes para a subsistência e intimamente ligadas às atividades humanas por milhares de anos, como é o caso da castanha-do-Brasil”, diz. “O manejo de árvores na Floresta Amazônica frequentemente envolve práticas que incluem a limpeza do sub-bosque, a abertura do dossel da floresta, a derrubada de plantas lenhosas e a proteção ativa das plantas de interesse. Essas ações humanas basicamente mudam o ambiente no qual essas árvores estão crescendo, nós realizamos esse estudo para encontrar evidências dessas práticas nos anéis de crescimento”, assinala.
Segundo Charles R. Clement, pesquisadores têm registros da ocorrência do El Niño — fenômeno que prolonga e aumenta a severidade da estiagem, resultando no crescimento menor das árvores — que remontam os últimos mil anos. Com esses dados nas mãos, os cientistas puderam inferir se os anéis da castanha-do-Brasil apresentavam expansão reduzida por causas naturais (quando a idade da árvore coincidia com a ocorrência do El Niño) ou por ação humana. “Se um bom número de árvores perdeu em concorrência, todas de uma vez, não pode ser um efeito natural, e o mais provável é que um grupo de índios tenha aberto clareiras na floresta”, explica.
Como o único instrumento disponível na época para derrubar árvores eram machados de pedra, o que dificultava essa ação, Clement acredita que os indígenas não conseguiam fazer roças muito grandes, o que explica a rápida recuperação da cobertura florestal depois de esses povos serem dizimados pelos europeus.
De acordo com o pesquisador do Inpa, a arqueobotânica tem contribuído para recontar a história da Amazônia de forma sem precedentes. Com base em estudos que estão sendo conduzidos por alunos dele, Clement afirma que, nos próximos anos, pode-se esperar muitas novidades sobre o passado da região. O próprio Victor L. Caetano Andrade pesquisa, no momento, como ocorria o manejo florestal na era pré-cabralina a partir de análises genéticas dos espécimes.
Fonte: Correio Braziliense