Foram necessários dez anos para que Adriana Maluendas voltasse a “abraçar a vida” depois de quase perdê-la. Sobrevivente dos atentados de 11 de setembro de 2001, quando dois aviões pilotados por terroristas seguidores de Osama bin Laden se chocaram contra o World Trade Center, em Nova York, a paranaense estava no auge da carreira, cumprindo compromissos na cidade e hospedada no Hotel Marriott World Trade Center, um dos sete prédios do complexo, localizado entre as duas torres. Ao fugir, ela levou um tombo e foi pisoteada, o que deixou sequelas físicas existentes até hoje. Além disso, durante muito tempo, Adriana carregou uma culpa por ter sobrevivido aos ataques, mataram 2.996 pessoas. Autora do livro “Além das explosões“, em que fala sobre o processo de superar os traumas, ela só conseguiu sentir gratidão por estar viva após quase uma década. Exatos 18 anos depois do fatídico dia, Adriana deu um contundente relato ao Blog do Acervo sobre sua luta pela sobreviência e sobre a dificuldade de lidar com as marcas emocionais deixadas pelos ataques.
Veja edição extra publicada pelo GLOBO em 11 de setembro de 2001
“Na época do atentado, eu tinha 29 anos e trabalhava com importação e exportação. Estava num momento ótimo da minha carreira, fazendo pós-graduação e abrindo minha própria empresa de consultoria. Tive a oportunidade de vir para Nova York tirar algumas certificações para trabalhar na área de commodities. Era um momento pelo qual qualquer profissional espera na vida.
Veja fotos dos ataques que derrubaram o World Trade Center, em Nova York
Naquele dia, uns 15 minutos depois de eu falar com meu pai e meu chefe, o primeiro avião colidiu (às 8h46 o voo 11 da American Airlines se chocou contra a Torre Norte). Ninguém dentro do hotel sabia o que estava acontecendo. Foi um impacto tão grande na torre que todos os móveis se mexeram, e imediatamente comecei a ver, pela janela, papéis e escombros caindo de andares mais altos. A vista do meu quarto dava para a praça central do complexo, entre as torres, então, o que eu conseguia entender era que estava acontecendo algo de muito sério lá no alto. Tentei ligar para a recepção do hotel umas três vezes e quando percebi que ninguém atenderia, decidi descer. Peguei a bolsa e a chave do quarto e saí. Foram as únicas coisas que peguei, porque eu tinha uma reunião na Torre Norte e achei realmente que iria voltar para me arrumar. Mas nunca mais retornei.
Saindo do quarto, ninguém ainda sabia o que estava acontecendo. Quando eu cheguei perto do elevador, percebi as pessoas em pânico. Muitos hóspedes ainda estavam de pijama, gritando “Corram! Corram!” e empurrando uns aos outros. Quando olhei pela janela panorâmica do elevador, vi destroços de um avião, muito fogo e o que pareciam ser pedaços de corpos. Nesse momento o sistema do alarme do hotel foi ativado e repetia a frase “Mantenham-se em seus quartos. Tudo está sob o controle.” Claro que todos os procedimentos foram mudados depois que tudo aconteceu, porque nós não poderíamos ficar lá dentro.
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Durante a minha decida até o saguão, fui empurrada, caí de costas e machuquei a coluna seriamente. Quando cheguei lá embaixo, parecia um filme de guerra. Era poeira e escombro para todos os lados, porque o hotel era ligado às torres. Quando o elevador do WTC explodiu no lobby, o fogo veio para o hotel, e tudo que se escutava era o pânico das pessoas.
Antes do 11 de setembro, ataques a embaixadas dos EUA matam 229 pessoas
Até aquele momento, no entanto, eu não fazia ideia do que estava acontecendo. Tentei correr para a lateral do prédio, mas a entrada do hotel estava completamente destruída. Os policiais e bombeiros gritavam indicando que nós devíamos ir para o outro lado, e eu só lembrava que tinha uma senhora de cadeira de rodas no meu andar. Quando os bombeiros conseguiram me tirar de dentro do saguão com outras pessoas, o segundo avião colidiu (às 9h03, o voo 175 da United Airlines se chocou contra a Torre Sul). Cruzei a rua e fiquei horas paralisada, olhando lá para cima sem acreditar no que estava acontecendo. Ver as pessoas gritando por ajuda e não poder fazer nada foi uma das coisas mais terríveis da minha vida.
Durante aquele dia, tive literalmente que correr pela minha vida. Quando consegui sair do hotel, andando pelas ruas, não conhecia ninguém na cidade, e o primeiro sinal de choque foi não lembrar de nenhum número de telefone. Não conseguia avisar a minha família que eu estava viva. Só depois, com a ajuda do consulado, tudo se resolveu. Quando as pessoas veem as imagens do ataque na televisão, elas obviamente se chocam. Mas estando aqui, nós sentíamos o cheiro e o calor, víamos as pessoas chorando e pedindo ajuda, quase sem saber se tudo era real. É algo que me lembro até hoje e que nos toca de uma forma muito particular.
Galeria mostra monumentos em homenagem a vítimas dos atentados em NY
Sofri problemas físicos que carrego até hoje. Duas das minhas costelas foram trincadas, quebrei alguns dentes e tenho um problema na coluna por conta do tombo na escada. Além disso, desenvolvi um quadro crônico de asma extremamente forte. Emocionalmente, fui diagnosticada com transtorno pós-traumático quase um ano após tudo acontecer. Eu achava que tudo ia se repetir. Durante meses eu dormia de roupas normais, em vez de pijama, porque achava que teria que correr para me salvar. Escutava barulho de sirene e já achava que algo estava acontecendo, mesmo no Brasil, a milhares de quilômetros de Nova York.
Foi um período muito difícil, e me fechei muito. Não queria conversar nem com a minha família sobre o que eu estava se passando, não conseguia nem celebrar o meu aniversário. Ficava me perguntando, ‘Por que eu? Eu estava num local em que tudo veio a baixo. Por que eu não morri?’. O sobrevivente leva um peso muito difícil de carregar, porque você estava presente e sobreviveu aquilo, mas sofre por ver que outras pessoas perderam seus familiares e você não pode fazer nada.
Acabei mudando de área, porque foi muito difícil trabalhar no mesmo ramo, e depois de um tempo, me mudei para os Estados Unidos. Só depois de quase dez anos , comecei a romper o ciclo e reaprender a abraçar a vida. Comecei a agradecer que sobrevivi e deixei de questionar tanto o porquê de ter acontecido comigo. Mas até eu chegar nesse momento, se passaram praticamente dez momentos.
A inauguração do Museu e Memorial Nacional 11 de Setembro, em 2014, foi muito marcante. Quando entrei lá, foi como retornar ao passado, mas quando olhei para as estruturas subterrâneas que o sustentam comecei a pensar que era a hora de me reestruturar. No lugar em que quase perdi minha vida, me reabri para viver.
Todo dia 11 de setembro é muito difícil, mesmo hoje, depois de 18 anos. A gente acaba reencontrando outros sobreviventes e conhecendo novas histórias. Antigamente, cada aniversário do atentado significava para mim que o terrorismo ainda está aqui, entre nós. Mas, hoje, vejo o dia 11 de setembro como um dia para lembrarmos que nada vai apagar o que aconteceu ou trazer de volta as vidas que foram perdidas. Mas que nós devemos nos unir mais.
Um dia desses uma pessoa me perguntou se eu não tinha ódio das pessoas que fizeram aquilo tudo. E não, eu não tenho. Já tive raiva, revolta, mas se eu continuar com isso, não vou a lugar algum. Eu vi o horror, conheci o terrorismo na minha frente, mas hoje consigo agradecer por estar viva.”
*Sob supervisão de William Helal Filho
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Fonte: O Globo