Levantamento feito pelo próprio Observatório revela que 75% dos jovens já presenciaram violência policial em bailes funk. A SSP afirma que ‘não comenta pesquisas cuja metodologia desconhece’.
No caminho de casa para o trabalho, o adolescente Gabriel, que mora e trabalha em Heliópolis, Zona Sul de São Paulo, conta que foi abordado por policiais militares em uma ronda de rotina. “Eu estava com o notebook do trabalho. Os policiais logo deduziram que eu havia roubado o computador e queriam que eu confessasse algo. Sorte que o notebook tem a senha do trabalho e eu liguei ele na frente dos PMs, e sabia a senha. Se não fosse isso, teria sido levado para a delegacia e acusado por algo que não fiz”, conta.
Em março, a União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas), preocupada com abordagens policiais mais ostensivas, como essa de Gabriel, criou o Observatório: ‘De Olho na Quebrada’. Formado por educadores e jovens moradores, o observatório reúne dados sobre violência policial dentro da comunidade, coleta depoimentos dos moradores e preserva a história do local. Felipe faz parte do Observatório da Quebrada.
O primeiro levantamento feito pelo Observatório da Quebrada, realizado em julho, mostra que 75% dos jovens que moram em Heliópolis e frequentam ou frequentaram pelo menos uma vez algum baile funk na comunidade já presenciaram violência policial durante a festa. A pesquisa ouviu 78 moradores da comunidade durante julho e descobriu que cerca de 78% dos entrevistados já esteve pelo menos uma vez em pancadões locais.
Por meio de nota, a Secretaria da Segurança Pública afirmou que “não comenta pesquisas cuja metodologia desconhece”.
Segundo moradores da comunidade e frequentadores dos pancadões, a Policia Militar costuma ser acionada durante os bailes e, na maioria das vezes, a dispersão das pessoas que se aglomeram nas ruas em frente a carros com som alto ou a bares e tabacarias, conhecidas como ‘barguiles’, é realizada com violência.
“Já passei por situações de ficar encurralado em vielas sofrendo ameaça [de policiais]. A nossa única opção é se esconder e esperar os policiais passarem. Eu nunca fui agredido diretamente, mas já presenciei casos contra alguns amigos”, relata um frequentador dos bailes de Heliópolis.
“Os PM são sempre muito agressivos. Na maioria das vezes, acabam agredindo diversas pessoas, tanto as que estão frequentando a festa quanto as que estão apenas passando pelo local”, conta uma moradora.
“Cheguei da faculdade na quinta à noite (28 de novembro) e desci para um bar na frente de casa, muita gente ‘cola’ lá. Então a PM chegou apontando a arma para todo mundo. Colocaram uma ‘doze’ (arma calibre 12 mm) na minha cara. Eu estava literalmente na porta de casa”, relata Nathalia (nome fictício). “Eles (PM) são sempre agressivos. Aparecem jogando bomba para dispersar, mas ficam batendo nas pessoas por nada. Todo mundo sai correndo, e eles ficam na frente das pessoas para bater em quem passa. Parado ou correndo, de qualquer jeito você apanha”, completa.
Ainda de acordo com o Observatório da Quebrada, mais de 50% dos que frequentam os bailes funk de Heliópolis não moram na comunidade.
“A falta de estrutura e aparelho cultural nas periferias de São Paulo faz com que esses bailes funk famosos de Heliópolis e Paraisópolis sejam uma centralidade para os jovens de comunidades da capital”, explica Aluísio Marino, morador de Heliópolis e um dos autores do levantamento. “Esses jovens circulam entre esses bailes para ter acesso a lazer”.
“Eu sempre vou (nos bailes funk) porque é perto de casa. Na real, a música oferecida por bares do bairro é o único lazer existente na comunidade”, conta um morador.
“Eu gosto muito desse ‘rolê’ porque é gratuito. É a melhor opção pra fazer alguma coisa, porque dinheiro pra gastar com festa não sobra, mas a gente fica com medo, né?. Até quando tem aglomeração na frente de um Samba eles aparecem soltando bomba, dá a impressão que não pode ter nada na favela”, conta a moradora Denise (nome fictício), afirmando que é comum agressão verbal por parte dos policiais, além da violência física. “Tem muita ameaça sempre”.
Heliópolis é a maior comunidade de São Paulo, com mais de 100 mil habitantes, e faz limite com município de São Caetano do Sul, no ABC Paulista.
Baile do Helipa
“Sempre teve, mas a repressão policial nos bailes funk está muito pior e muito mais frequente no último ano”, conta um morador de Heliópolis que costuma ir a essas festas com frequência. “Não estive no ‘Baile do Helipa’ desse domingo (1), mas presenciei abordagens policiais violentas em outros que fui este ano. É comum a polícia chegar já com bombas e bala de borracha”. O Baile do Helipa é um famoso baile funk de Heliópolis que acontece geralmente aos sábados, ao longo da Rua do Pacificador, popularmente conhecida como Rua Adriana.
No domingo (1º), por volta das 3 horas da madrugada, moradores divulgaram vídeos de policiais atirando balas de borracha contra pessoas que estavam no Baile do Helipa. Outro vídeo mostra os agentes encurralando um grupo em uma viela estreita e agredindo-o com golpes de cassetete. Naquela noite, um homem morreu a tiros pela PM. Ele é acusado de ter entrado em conflito com os agentes.
De acordo com uma moradora da Rua do Pacificador, todos os finais de semana a PM aparece durante a madrugada no Baile do Helipa. “A polícia nunca anuncia, ela chega jogando bala de borracha e bomba. É isso todo final de semana na rua de casa: gritaria e bomba”, afirma a moradora, contando que é comum saber de histórias de pessoas que se machucaram durante o baile por causa de ações policiais.
Na mesma madrugada do dia 1º, nove pessoas morreram em uma ação policial durante um baile funk em Paraisópolis, conhecido como Baile da 17.
Jovens são encurralados e a polícia chega batendo com cassetete em Heliópolis (SP)
‘A gente faz parte da cidade’
Para a presidente da União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região, Antonia Cleide Alves, a repressão policial aos bailes funk é uma forma de criminalizar manifestações culturais das periferias. “Quando acionam a polícia na favela não é para resolver um problema. É para criminalizar, prender e agora também para matar. Também acontece aglomerações de jovens em outras regiões da cidade, mas a polícia não chega nesses lugares como chega na aqui na favela”.
Para a Cleide, o baile funk é uma realidade de todas as favelas e regiões periféricas de São Paulo que não pode continuar sendo ignorada pelo poder público. “Por que continuamos a criminalizar ao invés de pensarmos em locais onde esses jovens possam ir para se divertir, locais que não seja na rua, dessa forma? A gente faz parte da cidade, precisamos ser considerados. Heliópolis está no bairro do Ipiranga. Não somos uma coisa a parte”, afirma.
Abuso de poder
Segundo dados do observatório, 37 pessoas morreram em Heliópolis por intervenção policial entre 2013 e julho de 2019 e 80% dessas vítimas estavam desarmadas. “Percebemos, assim, que a ação da polícia militar na comunidade é extremamente desproporcional”, explica Marino.
Outro problema que permeia a violência policial dentro das periferias de São Paulo, para Aluísio, é a invisibilidade social dessas comunidades. “Se não tivesse morrido nove pessoas em Paraisópolis, a gente nunca ficaria sabendo desse um que morreu em aqui Heliópolis”, afirma.
“Mesmo assim, a gente não consegue ter certeza do que aconteceu [em Heliópolis]: mal sabemos quem, como e onde essa pessoa morreu. Essa falta de informação faz parte de uma tática de invisibilidade social”, diz Aluísio, se referindo à morte da pessoa morte a tiros pela polícia durante o baile funk na madrugada do dia 1º, em uma viela em Heliópolis. Na manhã da quarta-feira (3), a vítima foi identificada como Alberto Goes, mas o corpo ainda estava no Instituto Médico Legal da Zona Sul de São Paulo aguardando identificação.
A SSP diz ainda que “desde janeiro 2019, a PM realizou 7.597 operações Noite Tranquila em mais de 14 mil pontos. No total, 222.525 pessoas foram abordadas, resultando em 1.275 pessoas presas e mais de 1,7 tonelada de drogas apreendidas. Todas as ocorrências de morte decorrentes de intervenção policial (MDIP) são rigorosamente investigadas pelo Departamento de Homicídios e Proteção a Pessoas (DHPP), pelos batalhões, por meio de IPM, e pelas corregedorias das corporações, com o acompanhamento do Ministério Público e do Poder Judiciário, para constatar a legitimidade das ações, de acordo com a determinação da própria secretaria, por meio resolução SSP/40”, diz a nota.
Ação policial em baile funk deixa um morto em Heliópolis
* Com supervisão de Cíntia Acayaba