Ex-guerrilheiro, e uma das vozes mais ativas na luta contra a ditadura, compara as atuais manifestações com os protestos do passado e diz por que os movimentos de rua o fizeram refletir sobre a decisão de abandonar a política
por Eliane Lobato
DIFERENTES
Para Gabeira, não há conexão entre o movimento atual e os protestos do passado
Ele é autoridade no assunto. Gritou em passeatas, organizou manifestações de rua, correu da polícia, participou do sequestro de um embaixador americano, foi preso, exilado e quase morto – tudo isso em um passado não tão distante assim. Fernando Gabeira, 72 anos, é o eterno “jovem de 1968”, ano marcante de uma década revolucionária no Brasil e no mundo. Com a experiência de ex-guerrilheiro que lutou contra a ditadura brasileira, associada à de deputado em vários mandatos (pelo PT e pelo PV, ao qual ainda pertence), Gabeira analisa, na entrevista a seguir, as manifestações iniciadas pelo Movimento Passe Livre, em São Paulo, e que se alastraram pelo País. Para o mineiro de Juiz de Fora, radicado no Rio de Janeiro, os protestos representam um momento histórico e até o fizeram repensar sua ideia de abandonar a política. “A manifestação já mostra, ainda que embrionária, uma renovação. Então, é uma primavera.”
“Os indignados do Movimento Ocupe Wall Street ainda não
alcançaram resultados, mas isso faz parte do jogo democrático”
“A Copa do Mundo também pode ser um momento de
tensão, porque vai coincidir com as eleições presidenciais”
Fotos: Eduardo Zappia/ag. istoé; Rafael Ribeiro
ISTOÉ – O sr., um genuíno contestador nos anos de chumbo, vê alguma similaridade entre o movimento atual e o da luta contra a ditadura?
FERNANDO GABEIRA – A proximidade mais interessante é com os movimentos internacionais. Dentro desse critério, tenho acompanhado o trabalho do Manuel Castells (sociólogo espanhol), que estuda as chamadas redes de indignação e de esperança. Ele mostra que há elementos nesse momento internacional que talvez eu possa aplicar ao Brasil. Por exemplo: o movimento não visa o poder estatal, mas, sim, explorar os sentidos da vida. É a luta para se desenvolver. Achar que há alguma identificação com a extrema esquerda pode ser uma ilusão.
ISTOÉ – Não há conexão nem com a histórica“Passeata dos 100 mil” realizada em 1968? Na semana passada, também mais de 100 mil pessoas foram às ruas do Rio para protestar.
FERNANDO GABEIRA – Em 1968, era um movimento estudantil que interpretava, também, a insatisfação da classe média, sobretudo contra a ditadura militar. O movimento caminhava para a esquerda e era marxista e anticapitalista, ou simplesmente não caminhava. Hoje não há essa utopia. O que existe atualmente é um conteúdo existencial. São pessoas insatisfeitas que buscam uma luta, contra ou a favor, e isso dá sentido à vida delas. Mas, uma vez colocado no cenário político, o conteúdo existencial precisa se justificar, ter uma base. No momento, é só uma insatisfação difusa, mas com o tempo pode ser que ganhe outras dimensões.
ISTOÉ – O sr. não acha que essas manifestações só são possíveis porque vivemos uma democracia plena?
FERNANDO GABEIRA – No passado, havia prisões, tortura, desaparecimento, possibilidade de perseguição a familiares. Hoje, estamos vivendo insatisfação em regime democrático. Por isso, também não é possível comparar o que está acontecendo aqui com a situação da Tunísia ou Líbia. São diferentes. No contexto da democracia, as dificuldades são outras, as armadilhas são outras. Evidentemente, tudo é melhor e mais avançado do que no passado. Em países democráticos como o Brasil, o que está unindo as pessoas é ser contra o cinismo da política, contra a corrupção.
ISTOÉ – O que não mudou é a polícia batendo em estudante, não é?
FERNANDO GABEIRA – É, não mudou a “ajuda” que a polícia dá ao movimento agindo assim. A polícia sempre foi aliada. Às vezes, vai longe demais, mas é aliada, principalmente agora em que todos podem filmar as cenas de truculência e exibir em redes sociais. Quando vejo gente ferida, penso: olha o que os policiais estão fazendo contra eles mesmos, o buraco em que estão se metendo.
ISTOÉ – Podemos chegar a uma primavera brasileira?
FERNANDO GABEIRA – Para mim, já é uma primavera brasileira. O termo começou em um movimento na França, onde o início da primavera coincide com o início do período escolar. Então, essa estação está sempre associada a movimentos de renovação. Como a manifestação já mostra, ainda que embrionária, uma renovação, então é uma primavera. Os estudantes querem mudar o Brasil, mas mudar para onde? Como? Eles não sabem, assim como os integrantes do movimento Ocupe Wall Street, nos Estados Unidos, ou mesmo os meninos da Primavera Árabe. Esse é um processo que é colocado em funcionamento e no seu curso é que vão aparecendo as possibilidades.
ISTOÉ – As manifestações atuais não têm palavras de ordem centrais. Na verdade, são várias as reivindicações. O que isso significa?
FERNANDO GABEIRA – Aqui no Brasil, há uma inquietação geral. E, quando isso acontece, as pessoas se unem com as suas inquietações. Você não pode dizer que todos estão ali pela redução do preço das passagens de ônibus ou que estão condenando os gastos com a Copa. É um processo mais amplo, legítimo e necessário, mas que só o tempo pode depurar.
ISTOÉ – O que o sr. acha do Movimento Passe Livre?
FERNANDO GABEIRA – O Movimento Passe Livre tem uma proposta que me parece um pouco utópica. O ideal seria pedir melhorias das condições reais do transporte coletivo. O passe livre é algo que, se vier, só virá no futuro. Então, você corre o risco de dizer para a pessoa algo parecido com pregação religiosa: “Coragem, o reino de Deus está próximo.” Mas esse reino nunca chega.
ISTOÉ – Qual é o papel da internet e das redes sociais nos movimentos atuais?
FERNANDO GABEIRA – É a característica específica dessa época. Uma revolta que se dá num tempo em que a revolução digital se impôs. As formas de organização e de convocação são diferentes, porque é tudo pela Internet, pelos celulares. Nós fazíamos reuniões em grupo, ao vivo.
ISTOÉ – Não é razoável pensar que o cansaço com a política atual teria sensibilizado os jovens e que o Movimento Passe Livre potencializou essa insatisfação?
FERNANDO GABEIRA – Na década de 1960, caíamos na escolha entre socialismo ou capitalismo. Hoje, não há mais uma grande força para deglutir os movimentos. Eles simplesmente continuam de forma livre e diversa. A juventude brasileira que está nas ruas é diferente, por exemplo, dos espanhóis indignados. Lá, eles foram motivados por um índice de desemprego que, entre os jovens, está em torno de 40%. No Brasil, vivemos um período do pleno emprego. Ao que tudo indica, não é a luta por oportunidade no mercado de trabalho que impulsiona as manifestações que apareceram até agora, e sim uma grande insatisfação.
ISTOÉ – No país do futebol, o sr. acha que as pessoas estão realmente indignadas com os gastos para a realização da Copa do Mundo?
FERNANDO GABEIRA – O volume de dinheiro empregado tem um peso. Na cerimônia que definiu as chaves da Copa do Mundo, no Rio, cada cadeira custou R$ 240 de aluguel por um dia. Por esse valor, dá para comprar uma cadeira nova. As pessoas querem dizer ao governo que o esporte é importante, mas não pode prevalecer sobre outras necessidades, e que elas não querem a Copa a esse preço. Mas, se colocar em votação de forma majoritária no País, pode até ser que as pessoas optem pela Copa e por esses gastos.
ISTOÉ – Em 2014, haverá eleição presidencial. O que está acontecendo agora pode modificar o resultado das urnas?
FERNANDO GABEIRA – Acho que sim. Há variáveis que podem influenciar e uma delas é o processo inflacionário. Se até o ano que vem a economia não estiver sob controle, acho que é possível que se avance para novas manifestações. A Copa do Mundo também pode ser um momento de muita tensão, porque vai coincidir com as eleições presidenciais.
ISTOÉ – Se o sr. fosse jovem, iria para as manifestações?
FERNANDO GABEIRA – Acho que sim. De modo geral, todo mundo que deseja ver o País mudar para melhor busca esse movimento. Quando encontra, é irresistível.
ISTOÉ – A maioria esmagadora dos manifestantes protestou de forma pacífica, mas também houve episódios de violência, com depredações de prédios públicos e saques. O sr. acha que as manifestações podem enveredar para algo mais grave e até ameaçar a democracia?
FERNANDO GABEIRA – Não. Acho que a democracia está consolidada no Brasil. Evidentemente, precisa se aperfeiçoar, mas acho que é um processo irreversível. Mesmo porque, num contexto internacional, qualquer saída autoritária, de um lado ou de outro, seria um suicídio. Então, não vejo essa possibilidade. O amadurecimento da democracia é cheio de idas e vindas, de trancos. Os Indignados da Espanha e o Movimento Ocupe Wall Street ainda não alcançaram resultados. São coisas que vão amadurecer no jogo democrático.
ISTOÉ – O sr. vai apoiar a candidata Marina Silva nas eleições presidenciais?
FERNANDO GABEIRA – Tenho muita simpatia pela Marina, mas pretendo esperar um pouco mais porque gostaria que o Partido Verde tomasse posição em conjunto. Acho que a Marina tem condições muito boas porque nossas ideias e as delas estão em contato.
ISTOÉ – O sr. se retirou da política definitivamente?
FERNANDO GABEIRA – A política brasileira foi transformada em um imenso bordel. Você pode tentar mudar ou denunciar, mas as coisas estão tão bem articuladas entre grupos de poder e seus apoiadores que dificilmente se consegue furar esse bloqueio. Um deputado custa R$ 136 mil por mês ao País. Imagina o que é ser deputado e sair toda noite com a sensação de que não fez nada. É muito difícil. Quando o Brasil se mexe, como agora, eu altero as minhas variáveis. Esse movimento é extremamente animador e tem balançado um pouco a minha situação.