Na terceira reportagem da série sobre o Cadastro Ambiental Rural (CAR), entenda como a transparência dos dados é crucial para o cumprimento do Código Florestal, apesar da ação de forças contrárias à disponibilização das informações.
Quando um proprietário ou posseiro vai fazer a inscrição de seu imóvel no Sistema de Cadastro Ambiental Rural (Sicar), é obrigado a fornecer diversas informações. Com elas, o CAR permite a visualização da situação ambiental dos imóveis rurais no país e pode ser base para as estratégias de regularização previstas no atual Código Florestal (Lei 12.651/2012). O sucesso destas estratégias depende, porém, da transparência das informações cadastradas. Tais informações envolvem o georreferenciamento do imóvel, com as áreas desmatadas e a serem restauradas, as áreas de uso consolidado e, se houver, a localização da Reserva Legal (RL). O cadastrante também deve apresentar os documentos de comprovação de posse ou propriedade e os dados do proprietário, possuidor ou responsável direto pelo imóvel rural.
A transparência total e ativa dos dados é um dos requisitos para o sucesso dos objetivos de recuperação dos passivos ambientais estabelecidos no Código Florestal, dizem especialistas ouvidos pela reportagem do ISA. Isso acontece porque a transparência permite o controle social, aumenta a eficiência dos órgãos de controle do Estado e permite que os agentes do mercado de commodities agrícolas tenham conhecimento sobre seus fornecedores e sua regularização ambiental.
A Constituição Federal, tratados internacionais assinados pelo Brasil, diferentes normas legais e especialistas em Direito Ambiental embasam o argumento de quem defende a transparência total dos dados do CAR. Ao mesmo tempo, setores do agronegócio e do governo, contrários à disponibilização dos dados, colocam entraves ao fornecimento das informações à população.
Parecer jurídico produzido pelo ISA reúne a base legal para a transparência ativa e total das informações contidas no Sicar. Entre os ordenamentos que permitem concluir que a transparência deve ser regra estão: a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981); a Lei de Acesso à Informação (Llei nº. 12.527/2011); o próprio Código Florestal; o Decreto nº. 7.830/2012, que criou o Sicar; e a Resolução nº 379 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama). A Constituição e tratados internacionais assinados pelo Brasil estabelecem o direito de toda a coletividade na participação em políticas públicas envolvendo a matéria ambiental, o que pressupõe acesso a informações. (Leia a nota na íntegra)
Lei diz uma coisa, governo faz outra – Mesmo com a legislação estabelecendo que a transparência das informações deve ser adotada, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) publicou a Instrução Normativa (IN) nº. 03/2014, que “institui a Política de Integração e Segurança da Informação do Sicar”. O dispositivo coloca em segredo dados pessoais e patrimoniais dos posseiros e proprietários e levanta críticas de juristas e especialistas.
Com a medida do MMA, ficam em sigilo informações que identifiquem os proprietários ou possuidores e suas respectivas propriedades ou posses, como CPF, CNPJ, nome, endereço físico e de correio eletrônico. Tampouco aquelas que permitam associar meios de produção ou resultados de produção agrícola ou agroindustrial de um imóvel rural aos respectivos proprietários ou possuidores e demais informações patrimoniais.
Janaína Rocha, gerente executiva de Florestas Comunitárias do Serviço Florestal Brasileiro (SFB) – órgão responsável por gerir o Sicar na esfera federal – acredita que a transparência das informações pessoais e patrimoniais pode colocar em risco a segurança dos proprietários ou possuidores e suas famílias. Este é um dos argumentos utilizados por setores do agronegócio contrários à transparência total dos dados. Outro é o da ilegalidade da disponibilização dos dados, o que não se sustenta tendo em vista a legislação.
Alice Thuault, analista de políticas públicas do Instituto Centro de Vida (ICV), não concorda com o argumento da insegurança dos cadastrantes, que ela considera uma “alavanca de medo”. “A CNA [Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil] está usando muito esse argumento. Agora, Mato Grosso, Rondônia e Pará disponibilizaram os dados cadastrais de 2007 até 2012 e não se observou aumento da criminalidade”, afirma. Os estados mencionados começaram a utilizar o CAR antes do Código Florestal no contexto das estratégias de redução das taxas de desmatamento na Amazônia Legal.
“Do ponto de vista de ter um instrumento de controle social, de fiscalização e monitoramento, sem esses dados [pessoais e patrimoniais] não tem muito o que se fazer”, avalia Brenda Brito, pesquisadora do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). “Se você tem os shapes [os perímetros das áreas dos imóveis] e não sabe de quem é a terra, pode fazer várias análises, mas não sabe quem é, não sabe se está comprando um produto que vem dessa área”, complementa.
Após Recomendação (nº 01/2015) do Ministério Público Federal (MPF) pela transparência total dos dados, o MMA lançou o módulo de consulta pública do Sicar. Nele, é possível saber a localização dos imóveis inscritos no sistema, o número de imóveis cadastrados por município, a área cadastrada e dados sobre o número de sobreposições com terras públicas, entre outras informações. O lançamento do módulo teve reação contrária de setores do agronegócio. A CNA chegou a apresentar uma Representação para responsabilização pessoal do ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, junto à Procuradoria Geral da República (PGR).A reportagem entrou em contato com a CNA, mas a entidade não quis se manifestar.
O módulo de consulta pública foi um avanço importante, mas ainda há lacunas. De acordo com Daniel Azeredo, coordenador da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (4CCR/MPF), a recomendação foi cumprida parcialmente. “O problema é esse: avançou, mas ainda está incompleto. Precisa avançar mais para a transparência total”. Ainda falta a divulgação, justamente, dos dados pessoais e patrimoniais.
“A Instrução Normativa nº 03/2014 incide em ilegalidade e inconstitucionalidade, uma vez que impossibilita, sem autorização legal, o exercício do direito fundamental à informação socioambiental, pertencente a toda a coletividade”, escrevem os advogados do ISA na nota técnica.
O Observatório do Código Florestal, que congrega organizações da sociedade civil – entre elas o ISA – em torno do objetivo de promover a implementação do Código, já apresentou uma série de sugestões visando ao aprimoramento do Sicar. Entre elas, está a revogação da referida IN e a transparência ativa dos dados, inclusive pessoais e patrimoniais. Leia as sugestões.
Transparência ajuda no combate aos usos ilegais do CAR
Com o acesso da sociedade civil aos dados do CAR, novos atores, além do Estado, podem participar dos esforços de monitoramento e controle sobre os dados cadastrados e das ações previstas no Código Florestal. “Colocar sigilo impede que o CAR seja usado como instrumento de controle ambiental e não se consegue usar este instrumento para o que ele deveria estar servindo”, considera Brenda Brito.
Além disso, a transparência e o consequente controle social podem diminuir o uso do CAR em fraudes, como as tentativas de usar o registro para legitimar invasões e apropriações de terras. Leia a primeira reportagem da série do ISA sobre o CAR e saiba mais sobre o problema.
Daniel Azeredo, do MPF, explica que uma das principais fraudes com o uso do CAR é a utilização de “laranjas” – pessoas que, conscientes ou não, têm seus nomes e dados utilizados em atividades irregulares. No caso do CAR, por exemplo, existem registros de cadastros feitos por grileiros no nome dessas pessoas, para mascarar de quem realmente é o registro e tornar mais difícil a identificação dos invasores de terras. “Com a transparência, fica mais fácil para os órgãos de investigação e da própria sociedade civil chegar nesses dados”, afirma.
Dados abertos: exigência do mercado
Além da sociedade como um todo, com a transparência das informações, os atores do mercado têm a possibilidade de verificar a situação de regularidade de seus fornecedores. Sem os dados públicos, os frigoríficos e traders de grãos, por exemplo, ficam sem os instrumentos para cobrar o cumprimento do Código Florestal de seus fornecedores e identificar quais deles estão dentro da lei. Correm, assim, o risco de ter em sua cadeia produtos provenientes de fazendas ambientalmente irregulares. Além disso, os próprios cidadãos ficam sem ter como saber se o que compram no supermercado é produzido de acordo com a lei.
No mercado internacional de commodities, existem regras para que os produtos sejam vendidos. Elas envolvem a não vinculação com o desmatamento ilegal e com o trabalho escravo, por exemplo. Gabriela Savian, engenheira agrônoma e consultora ambiental, considera que, para que um exportador verifique o cumprimento das regras ambientais de seus fornecedores, é necessária transparência das informações cadastradas.
A Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura – que congrega organizações da sociedade civil, entidades representativas do agronegócio, pesquisadores e empresas – publicou nota em que defende a “ampla transparência de dados, cadastros e sistemas de informações ambientais e fundiárias”. Assinada por representante da WWF Brasil, pelo diretor da Sociedade Rural Brasileira e por representante da Cargill, gigante do ramo alimentício a nota diz: “O movimento acredita que a transparência traz segurança jurídica à produção agrícola, porque ela define bem a linha que separa produtores regulares, ou em regularização legal, daqueles que poderiam macular a imagem do setor”.
“A partir do momento que se consegue separar quem está fazendo certo e quem está fazendo errado, se consegue comprar diferente”, diz Alice Thuault. Através desse movimento, de acordo com a pesquisadora, o consumo é colocado como uma força incentivadora da regularização ambiental dos imóveis.
Isso foi observado no Pará antes mesmo de o CAR virar uma realidade para todo o país. Em 2009, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Ministério Público Federal (MPF) multaram dezenas de pecuaristas – por conta de desmatamento ilegal – e os frigoríficos que compravam a carne destes fornecedores. As ações pediam um total de R$ 2 bilhões em indenização.
O MPF firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) – conhecido como TAC da Pecuária – assinado com os frigoríficos e o governo estadual. O acordo previa que os frigoríficos só poderiam adquirir gado de fazendas que atendessem alguns requisitos: não estar na lista de embargos e multas do Ibama; não possuir áreas desmatadas detectadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe); ter o CAR; não estar sobreposta a Unidades de Conservação (UCs) e Terras Indígenas (TIs); e não constar na lista de trabalho escravo do Ministério do Trabalho.
O Imazon fez um estudo – focado em alguns dos frigoríficos que assinaram o acordo – sobre os impactos do TAC: antes do acordo, em 2009, só 0,19% das fazendas que venderam para os frigoríficos analisados tinham registro do CAR. Em 2010, logo depois da assinatura do TAC, 60% dos fornecedores dos frigoríficos tinham o cadastro. Em 2013, esse número saltou para 96%. Brenda Brito considera que, se não fosse a transparência dos dados pessoais e patrimoniais – hoje, o Pará é o único estado a disponibilizar esses dados -, a verificação do cumprimento das exigências do TAC não seria possível.
ISA