O médico sanitarista Eduardo Jorge, que concorre à presidência da República pelo Partido Verde (PV), credencia-se para ocupar o lugar de candidato incômodo desta eleição. Pretende discutir temas áridos, como reforma política, implementação do parlamentarismo, e tabus, a exemplo da legalização do aborto e da maconha.
Fundador do Partido dos Trabalhadores, em que ficou 20 anos, e ex-secretário municipal do tucano José Serra, Jorge vê um modelo de Estado desgastado. “O nosso Estado, além de intervencionista ao extremo, é parasita, com uma estrutura de presidencialismo imperial”, diz ele, que defende as consultas públicas e plebiscitos.
Autor da lei dos genéricos, o ex-deputado federal pelo PT sabe que tem “zero ou alguma chance” de vencer o pleito deste ano. Também é ciente que será difícil repetir o sucesso da ex-correligionária Marina Silva. A ambientalista, vice de Eduardo Campos (PSB), obteve 20 milhões de votos em 2010. A saída dela do PV para tentar criar a Rede foi nefasta, segundo Jorge, para a causa ambiental. “A organização do movimento político ambiental é frágil no país e aí ainda se dividiu. A gente devia ter se mantido unido e ampliado o PV”, analisa o candidato, que deixa a porta aberta para a volta de Marina.
Pergunta. O senhor tem de 1% a 2% dos votos. Como tornar a sua candidatura viável?
Resposta. Em um campeonato, a gente nunca sabe como termina. É verdade que tem três candidatos grandes, favoritos. Então é difícil dizer se um partido, além destes três, tem zero ou alguma chance. A gente tem consciência disto. Mas o PV tem obrigação de dar, no primeiro turno, uma opção para aqueles que têm uma convicção formada sobre a questão da sustentabilidade. Mas nada é impossível, principalmente num ambiente destes, de tanta instabilidade e de indocilidade da opinião pública.
P. E qual é a meta do PV nesta eleição?
R. Na eleição passada, elegemos 14 deputados federais, quatro “bateram asas” [mudaram de partido]. Agora queremos ter cerca de 20 deputados federais, e deputados estaduais em todos os Estados. Também é importante projetar o PV para as eleições municipais de 2016. Sabemos que ainda é difícil para um partido como o nosso chegar ao Executivo em Estados maiores. Temos de avançar pelas prefeituras, como fizemos no PT lá atrás, pois é onde você mostra a sua capacidade de governar e implantar novas políticas.
P. Hoje existem 32 partidos. O que diferencia o PV dos demais?
R. Os partidos brasileiros são partidos do século 20. É da natureza deles se preocuparem com as questões econômica e sociais e achar que a natureza está a nossa disposição. Então, o papel do PV é muito importante. Ele é um porto seguro destas questões da sustentabilidade, de uma nova economia, de algumas teses de direitos humanos e sociais que são de vanguarda e difíceis de serem aceitas pelos partidos grandes, que fazem a conta dos marqueteiros.
P. Falando na questão ambiental, como o senhor analisa a política externa brasileira sobre estes temas?
R. O Brasil vem resistindo a lidar com o processo de desenvolvimento sustentável e fica sempre no retrocesso. Nas questões mais importantes que a ONU nos propôs neste aspecto, por exemplo – o aquecimento global e a adaptação às mudanças climática -, a posição do país é sempre a de somar com a China e nações deste tipo numa posição reativa, de não querer assumir responsabilidades maiores. Fui a um Fórum Nacional de Mudanças Climáticas no Palácio do Planalto em 2005, que tinha cinco ministros, e fiquei perplexo. O discurso era que quem criou o problema que o pague. Eu até tenho uma certa desconfiança de que a nossa presidenta é do time dos céticos.
P. Dilma é cética para o senhor?
R. Como o [George W.] Bush, dos que acham que o aquecimento global não existe, que é uma invenção. Ela, pela formação e pelo comportamento que tem mostrado, não sabe a gravidade das consequências do aquecimento global e da crise da biodiversidade para a humanidade. E, por esta incompreensão, o Brasil não desempenha o papel de liderança mundial que deveria e que está vago. Considera que assumir metas obrigatórias é como se alguém estivesse ferindo a soberania nacional. Até pode fazer uma coisa ou outra, mas acha que metas são para a Europa, Estados Unidos, Japão, Rússia.
P. Ambientalistas e empresários criticam, por diferentes motivos, as concessões de licenças ambientais. A legislação brasileira é consistente?
R. Não há falta de legislação ambiental, o que há é falta de vontade, e manipulação por parte do governo. No licenciamento das represas, por exemplo, que deram origem às usinas do Rio Madeira [em Porto Velho, capital de Rondônia, no norte do país], os técnicos concursados do Ibama deram parecer dizendo que o projeto era insuficiente, que não havia um estudo hidrológico adequado. Eles foram trocados pelo Governo por outros e, em três meses, saiu o parecer licenciando as obras. Resultado: as empresas ainda não estão nem produzindo a energia toda, mas já causaram um desastre ecológico sem precedentes. Porto Velho ficou três meses com um quinto da cidade embaixo d’água.
P. No seu programa de governo, é citada a necessidade de crescimento zero em alguns países. Isto se aplicaria ao Brasil?
R. Falamos em crescimento zero porque há países dentro dos países. Em São Paulo, por exemplo, você tem Miamis. Não dá para 1% ou 2% da população brasileira continuar a consumir como está. Este pessoal tem de ter crescimento zero ou até decrescimento para que você possa crescer em algumas áreas do Brasil, como o semiárido, respeitando os limites da natureza. Manter um estado de bem-estar, com saúde, educação etc, já seria extraordinário.
P. E como ficaria o crescimento do PIB?
R. Pode até ser que com este processo haja um crescimento de PIB, como pregam os economicistas, desde que seja virtuoso. Eu vou crescer em cima da indústria de petróleo, em cima de uma agricultura que produz alimentos com veneno, produzindo em larga escala motocicletas que causam genocídio dos jovens brasileiros? O crescimento não pode ser a qualquer custo, tem de trazer bem-estar, felicidade. Vou estimular a ampliação da indústria do automóvel incentivando o uso irracional dos carros, que quando dá um espirro correm quatro ministros para socorrer? Eu não sou contrário às pessoas terem um carro, tem até um lá em casa. Só que tem de fazer um uso racional.
P. O senhor concorda com as críticas de seu partido de que há uma excessiva intervenção do Estado na economia nacional?
R. Nós não podemos ser a favor de um Estado parasitário e hoje, no Brasil, o nosso Estado, além de intervencionista ao extremo, é parasita. Ele tem uma estrutura de presidencialismo imperial, que a gente quer substituir pelas centralidades das prefeituras. Hoje, todas as esperanças da democracia brasileira estão centralizadas em Brasília. É um país em que o Governo Federal fica com 68% dos tributos. Os Estados, com cerca de 20% e as prefeituras, com uns 10%. Nosso pensamento é inverter este processo.
P. E como isto se daria?
R. Vamos ser bastante rigorosos cortando em Brasília e crescendo nos Estados e prefeituras. A gente quer fortalecer o Estado onde ele é mais próximo da democracia participativa direta e é isto que o povo quer e está nas ruas exigindo: mais democracia. Mas de ponto de vista factível no dia a dia, onde essas pessoas possam participar. E isto pode se dar na administração de suas cidades, da prefeitura que está ali ao alcance das mãos. As administrações municipais é que devem comandar a saúde, educação e outras políticas importantes. É um absurdo também o Brasil ter 39 ministérios ou secretarias com este status, com toda burocracia e mordomia que isto significa em custo ao Brasil. Queremos cortar no Executivo e também no Legislativo, que é algo que ninguém fala. Pois se você quer reduzir Brasília tem de ser nos dois.
P. Todos os partidos defendem um modelo de reforma política. Qual seria o modelo do PV?
R. A gente sugere três grandes propostas que devem ser discutidas com a sociedade, porque exigem uma reforma constitucional: o parlamentarismo, o voto distrital e o voto facultativo. Somos a favor da ampliação da democracia direta. O Brasil tem de aperfeiçoar e tornar mais frequentes consultas públicas e plebiscitos. Também tem de privilegiar a tramitação de projetos de autoria popular. Mas, o que a gente diz com toda clareza para este movimento novo nas ruas é que a democracia direta não substitui a democracia representativa. Cair neste descrédito na democracia representativa, como o país está enfrentando, dá espaço a pensamentos totalitários tanto de esquerda quanto de direita.
P. Voltando ao parlamentarismo. Ele não pressupõe partidos fortes e o que, de fato, mudaria na dinâmica política brasileira?
R. Defendemos o parlamentarismo, porque acreditamos que não dá para ficar neste presidencialismo imperial e com o Congresso Nacional refém de migalhas clientelistas e mordomias para poder sobreviver. O parlamentarismo é a forma mais colegiada e ele, por si só já é a reforma dos partidos. Os partidos vão se enraizar e se fortalecer no longo prazo, como acontece nos países europeus.
P. Mas como aprovar estas mudanças se os políticos eleitos se beneficiam destas benesses?
R. É preciso acreditar na população e na democracia. Pode ser que não mude na próxima legislatura, que demore duas ou três. Mas o debate com a opinião pública tem de começar.
P. E o voto distrital misto, por que seria o melhor modelo?
R. É uma forma de você ter uma campanha mais racional, mais próxima do povo. Pois você tem uma parte que é voto em lista, que é partidário e ideológico. Já a outra, o distrital, vai dividir as regiões em áreas menores e cada candidato vai fazer uma campanha mais próxima do povo e mais barata. Hoje, as campanhas são milionárias e escravizam os parlamentares, que acabam devendo satisfação mais a quem os financiou do que a quem os elegeu.
P. A campanha do senhor pediu autorização à Justiça Eleitoral para gastar 90 milhões de reais…
R. Eu não pedi nada disto, a direção do partido que copiou, por uma questão de inércia burocrática, o planejamento da campanha da Marina (Silva) de 2010 e repetiu os 90 milhões (de reais). A minha posição é que tem de mandar uma errata para o Tribunal Eleitoral corrigindo este número.
P. E quanto deve ser gasto?
R. Eu vou propor cortar 90%, vai cair para uns nove (milhões). Mas, mesmo assim, vou tentar gastar menos.
P. Serão aceitas doações de pessoas jurídicas?
R.O financiamento da campanha também, para mim, deve vir do financiamento público e de pessoas físicas. Não quero doações de empresa. Porque, caso contrário, fica aquela discussão da campanha da Marina: se nós vamos receber deste tipo de empresa e de outro tipo, não. Como é que vai ser este subjetivismo? (Eduardo Jorge, segundo sua assessoria, solicitou ao TSE que o limite de gastos de sua campanha seja reduzido para 15 milhões de reais. A sua campanha não aceitará doações de pessoas jurídicas)
P. Em seu programa, o senhor defende a legalização do aborto. Quais benefícios esta mudança traria?
R. A nossa posição é expandir o planejamento familiar para reduzir o número de abortos e investir na educação no ensino fundamental para evitar a gravidez precoce que hoje é uma epidemia no país. Eu sou, aliás, o autor da lei de planejamento familiar. Por outro lado, há estimativas que mostram que entre 700.000 a 900.000 mulheres fazem estes procedimentos de interrupção de gravidez na clandestinidade no Brasil por ano, em condições inseguras e sendo consideradas criminosas pela lei brasileira. E eu vou lavar as mãos como [Pôncio] Pilatos e abandonar estas mulheres a sua própria sorte, principalmente aquelas mais pobres que vão em condições mais precárias e ficam com sequelas físicas, às vezes morrem? Tem realmente de legalizar e, quando atender uma mulher querendo interromper a gravidez no Sistema Único de Saúde, esclarecê-la e tentar mostrar que há opções de planejamento familiar muito mais racionais e seguras.
P. Na última eleição presidencial e na atual os candidatos se distanciaram deste tema…
R. Por hipocrisia ou covardia. Você não pode acreditar que pessoas esclarecidas tenham posições como o Serra e a Dilma tiveram na eleição passada. O que eles fizeram foi um malabarismo vergonhoso para dizer que eram a favor da criminalização das mulheres brasileiras. Porque foi isto que eles fizeram. Eu não acredito que eles (os atuais presidenciáveis) pensem assim – com exceção do pastor [Everardo, que é candidato à presidente], mas que mesmo assim eu duvido de sua fé se a coisa acontecer perto de sua família. Eles se comportam desta forma por puro cálculo eleitoral. Mas, quando você adota a postura tomada pelos partidos favoritos, você na prática está fortalecendo que estas mulheres são criminosas e, além das sequelas físicas, fortalece também as psíquicas. Afinal, elas já passam por outra condenação que é religiosa.
P. O senhor defende a legalização do uso medicinal e recreativo da maconha. O Brasil está pronto para esta mudança?
R. Basta ver que a política atual, que a gente adotada desde 1961, não está dando certo em nenhum lugar do mundo. É um fracasso retumbante. Já foram gastos bilhões ou trilhões de dólares pelo mundo e o número de usuários só aumentou, a gravidade das drogas usadas também, a quantidade de jovens presos pelo mundo só cresce. Por isto, países mais sábios começaram a implementar políticas alternativas.
P. Mas qual é a política que o PV pretende implementar neste sentido?
R. É seguir os exemplos pelo mundo, legalizar e regular. O termo regular é muito importante, porque antes o PV já era contra esta política proibicionista. Mas falava muito em legalizar. e falar em legalização somente parece que a gente está querendo incentivar o uso. Pelo contrário, não queremos incentivar psicoativo nenhum, nem a cannabis, nem o álcool nem o cigarro. Regular também significa pegar esta montanha de dinheiro que está sendo jogada em prisões e penitenciárias, desgraçando a vida de usuários e jovens que são usados como soldadinhos do tráfico, e investir em educação e saúde. Hoje, o Brasil tem uns 4 a 5 milhões de usuários de maconha – que causa dependência em cerca de 10% segundo as estatísticas.
P. E com as outras drogas?
R. Cada uma delas tem de ter a sua estratégia para sair da ilegalidade e entrar numa política de redução de danos. Mas são drogas mais difíceis e nocivas, que têm de se fazer uma transição mais rigorosa de acordo com as suas características sociais e o modo como afetam a saúde.
P. Na candidatura do senhor, o PV vem retomando bandeiras liberais. Por que elas foram abandonadas na última campanha?
R. A última campanha foi bastante vitoriosa, mas foi uma espécie de coligação entre o PV e a Marina. Uma coligação mesmo, porque a Marina é uma verdadeira instituição que tem ideias próprias e o PV optou por respeitar algumas posições religiosas conservadoras da Marina, como as em relação às drogas ou ao aborto. Se não fosse assim, seria impossível fazer uma aliança com ela.
P. A candidatura da Marina em 2010 trouxe benefícios, de fato, para o PV?
R. Foi uma campanha importante, com saldo positivo para o país. A questão da sustentabilidade nunca foi discutida tanto quanto naquela ocasião. Em termos de bancada, foi uma coisa desastrosa para a gente. Como pode você ter 20 milhões de votos (votação de Marina Silva à presidência) e não aumentar um deputado? É uma coisa inexplicável. Aliás, a gente tinha 15 e ficou com 14.
P. Como o senhor viu a saída da Marina do PV?
R. Foi desastrosa. Na minha avaliação, a simpatia da opinião pública com a questão da sustentabilidade é crescente no Brasil. Mas a gente perde muito porque a organização do movimento político ambiental é frágil no país e aí ainda se divide. A gente devia ter se mantido unido e crescido o PV, que ainda é frágil, Brasil afora.
P. De quem é a culpa por esta divisão?
R. Eles [os criadores de Rede] preferiram criar um partido a imagem e semelhança da Marina. É um direito, mas um desserviço. E tanto eles quanto a direção do PV são culpados por esta divisão que foi nefasta para a causa ambiental. Se dependesse de mim, nós caminharíamos para uma recomposição.
P. O senhor foi fundador do PT e foi secretário em gestões tucanas. Quais as principais diferenças entre os dois partidos?
R. Como eu sou um velho socialista, eu sei que o PT e o PSDB são da mesma família socialista, assim como o PSB. A social-democracia alemã quando foi fundada era o partido de (Karl) Marx e (Friedrich) Engels. Também tenho a consciência prática de que as posições políticas deles não são tão distintas. O que existe é uma diferente extração social. O PT é um partido que, realmente, tem uma base sindical e social muito forte. O PSDB é um partido mais de teóricos, intelectuais de classe média, e o PSB sempre foi um braço auxiliar do PT. Por isto, na minha trajetória dentro do PT, um dos problemas que tive e que me levou ao desgaste com a direção e ao meu afastamento em 2003 foi que, desde 90, eu vinha defendendo que um governo reformista de orientação socialista ou social-democrata só teria força e sustentabilidade com a união entre PT e PSDB. Defendi que era necessária uma aliança que unisse o PT e o PSDB de uma maneira que não ficassem tão reféns de partidos e figuras conservadoras e até reacionárias, como ficaram e atrapalharam bastante os seus governos.
P. E qual dos três principais candidatos possui um perfil mais próximo ao PV?
R. Você quer falar de segundo turno? O segundo turno, a gente vai discutir no segundo turno. O alinhamento do PV não pode ser determinado automaticamente. Se nós não formos, vamos avaliar o candidato A, B ou C da família socialista que tiver lá e qual é a abertura que eles têm para as nossas teses. Não dá para dizer, porque eles têm virtudes e até defeitos parecidos.
Fonte: Caderno de política do Jornal El PAÍS – Edição Brasil de 27/07/2014 //Foto: Bosco Martin