Índices divulgados nesta terça-feira pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) apontam que, no acumulado dos sete primeiros meses do ano, o estado do Rio atingiu o maior patamar de autos de resistência — atualmente chamados de homicídios decorrentes de intervenção policial — em mais de duas décadas. Foram 895 mortes em confronto com as forças de segurança de janeiro a julho, no maior número desde 1998, o mais antigo disponível nas estatísticas oficiais do órgão. É como se quatro suspeitos morressem pelas mãos do Estado a cada dia, ou um a cada seis horas.
Na comparação com o ano passado, quando foram computados 643 casos, o aumento é de 39,2%. Já considerando somente os dados de julho, diante do mesmo mês de 2017, os autos de resistência mais do que dobraram, saltando de 63 para 129 ocorrências. Sob intervenção federal na segurança pública desde fevereiro, o estado do Rio registrou ainda, na somatória dos sete primeiros meses do ano, praticamente o mesmo total de mortes em confronto dos quatro primeiros anos da série histórica. Entre 1998 e 2001, reunindo o acumulado de janeiro a julho de cada ano, chega-se ao número de 926 casos — apenas 3,5% mais do que em 2018.
Em média aproximada, um a cada nove autos de resistência registrados no estado este ano aconteceu na área atendida pelo 7º BPM (São Gonçalo), colocando o município da Região Metropolitana no topo desta estatística. Foram 104 mortes do gênero na cidade, contra 55 nos sete primeiros meses do ano passado, em um crescimento de 89%. Na sequência, vêm três Áreas Integradas de Segurança Pública (Aisps) situadas na Baixada Fluminense: a Aisp 15 (Duque de Caxias), com 84 ocorrências; a Aisp 24 (Queimados), com 74; e a Aisp 20 (Mesquita), com 71.
Tratando apenas da capital, predominam três regiões na Zona Norte. Em primeiro lugar, está a área do 41º BPM (Irajá), com 49 mortes — houve, porém, uma redução de quase 40% em relação aos sete primeiros meses de 2017, quando foram computados 81 casos. Em seguida, aparecem a Aisp 3 (Méier), com 43 autos de resistência no período, e a Aisp 16 (Olaria), com 34. Apenas uma Aisp localizada no interior do estado aparece entre as dez com mais homicídios decorrentes de intervenção policial: a de Angra dos Reis, onde atua o 33º BPM e registrou-se salto de nove para 35 ocorrências, em um aumento de 289%.
O crescimento computado no município da Costa Verde coloca a Aisp 33 na terceira posição do ranking por variação percentual. À frente, empatadas, estão duas regiões cuja análise é influenciada pelo fato de que o total de mortes em confronto havia sido muito baixo entre janeiro e julho de 2017: a Aisp 23 (Leblon), que subiu de dois para 22 casos; e a Aisp 28 (Volta Redonda), no Sul Fluminense (de um para 11). Em ambas as áreas, o aumento foi de exatos 1.000%.
No caso da Aisp 23, o fenômeno foi impulsionado sobretudo pelos números da comunidade da Rocinha, situada em São Conrado, na Zona Sul da capital. A 11ª DP, delegacia que fica na favela, registrou sozinha 18 autos de resistência no período analisado, contra uma única ocorrência no ano passado.
Especialistas comentam números
Para José Ricardo Bandeira, presidente do Instituto de Criminalística e Ciências Policiais da América Latina, o aumento nos autos de resistência tem relação direta com o início da intervenção em curso no estado:
— Maximizaram-se as incursões e a política de enfrentamento, voltando à estratégia de combate que era praticada antes das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), com o agravante de que agora as polícias estaduais estão, de certa maneira, sob a proteção do Governo Federal.
Já a socióloga Silvia Ramos, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, classifica os números de mortes em confronto como “inaceitáveis”:
— Nada justifica que alguma polícia do mundo use a força letal dessa forma descontrolada. O Rio é o caso mais extremo no Brasil, e o país já é conhecido pelo excesso de uso da força letal policial. Temos uma cultura dentro das polícias que tolera e algumas vezes valoriza a morte do opositor. O resultado é conhecido: também somos recordistas em policiais mortos — diz a pesquisadora, que também vê ligação entre o aumento na estatística e a intervenção federal:
— O quadro se agravou. Há a omissão dos interventores nos casos de flagrante excesso e até nos casos de chacinas policiais. São 895 mortes e nenhuma apuração, nenhuma palavra sobre elucidação desses excessos, nenhuma expressão de que a violência policial será contida. Isso é ruim para a própria polícia. Temos, hoje, uma polícia que, quando está dentro das favelas, está fora de controle.
Já Paulo Storani, antropólogo e ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope), relaciona o fenômeno também ao aumento da criminalidade no estado, bem como ao alto número de mortes de policiais militares em serviço ou de folga.
— O primeiro ponto é questionar se esses autos de resistência não ocorrem também por conta do aumento da audácia criminosa. Além disso, temos uma polícia com o efetivo cada vez mais reduzido, o que gera sobrecarga. Vamos lembrar que esses policiais militares são seres humanos, trabalhadores, que precisam de uma estrutura de trabalho que permita uma folga para recuperação física e psicológica. Sem isso, diminui a capacidade de tomada de decisão e, muitas vezes, gera uma resposta além dos limites previstos dentro de uma ideia de progressão, sempre com força máxima — analisa Storani, antes de pontuar:
— Acredito que existe um conjunto de fatores, potencializado pela falência da política de contenção policial adotada no Brasil pelos últimos 30 anos, sem que haja qualquer ação pública de médio ou longo prazo para conter a violência.
Foto: Fabiano Rocha
Fonte: Extra