Outubro será um mês crucial para o futuro das cidades brasileiras
No dia 2, brasileiros escolherão prefeitos e vereadores em 5.568 municípios. Será a oitava vez que o país sediará eleições locais desde a Constituição de 1988, a Constituição pós-ditadura militar, que pavimentou o caminho para a governança descentralizada. E de 17 a 20 de outubro, Quito, no Equador, sediará a Cúpula das Nações Unidas Habitat III.
Nesse grande esforço, que ocorre a cada 20 anos, prefeitos, planejadores urbanos, diplomatas, e urbanistas de todo o mundo se reúnem para negociar um acordo internacional para as metas de desenvolvimento das cidades, que afetará as próximas gerações, a chamada “Nova Agenda Urbana”.
O senso comum sugere que a maioria dos desafios sociais, econômicos e ambientais do século 21 vai se manifestar em cidades e, assim, as soluções para tais desafios devem, logicamente, também acontecer no âmbito das cidades. Diante de nós está a chance de ver as cidades brasileiras, seus obstáculos e oportunidades, sob a ótica de cidade e não de Estado nacional.
Para os estudiosos de cidades e planejadores urbanos – muitos dos quais estarão presentes na cúpula Habitat III – o Brasil sempre ofereceu alguns dos mais destacados casos de estudo sobre extrema desigualdade e extraordinária inovação em cidades, agindo como um comparador central para processos urbanos similares mundo afora. É um momento, portanto, de ensinar e também de aprender.
O Brasil se urbanizou cedo. Em meados do século 20, o país já tinha alcançado níveis de concentração populacional em cidades muito superiores aos vistos na Ásia e na África. Entre 1970 e 2000, o sistema urbano absorveu mais de 80 milhões de pessoas.
Esse intenso processo de urbanização gerou inúmeros exemplos em que cidades brasileiras viraram objeto de estudo. O planejamento modernista, a militarização das favelas, a criação das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) e também a observação antropológica da informalidade e o chamado ‘urbanismo insurgente’ são apenas alguns dos temas que põem as cidades brasileiras no foco de pesquisas de planejamento urbano. Frequentemente, são caso de estudo de problemas e também de soluções.
Por exemplo, mundo a fora a oferta limitada de moradias em cidades com elevada taxa de crescimento populacional leva a crises habitacionais e migração forçada. No Brasil, contudo, a autoconstrução, onde moradores erguem suas próprias casas e suprem sua demanda imediata por habitação, é, ao mesmo tempo, um problema e solução. A criação de assentamentos sem adequada infraestrutura desafia autoridades locais, porém, tal enfrentamento regula a especulação imobiliária. O desafio é discutir a suspensão de regimes regulatórios e pensar no investimento em engenharia e arquitetura social, sem, contudo, levar ao crescimento insustentável das cidades.
Cúpulas e grandes eventos globais também deram visibilidade à abundante e rica tradição brasileira de estudos urbanos no discurso global.
Após o Brasil ter sediado a Copa do Mundo 2014 em 12 capitais diferentes e as Olimpíadas no Rio, por exemplo, cidades se tornaram o foco central para todos os tipos de glória e aflição no país: Brasília invocando o modernismo de Niemeyer; Porto Alegre internacionalmente conhecida pelo orçamento participativo que identificou a era PT; Recife talvez injustamente associada com o vírus zika; São Paulo como um dos locais com maior concentração de helicópteros particularesper capita no mundo; e o Rio, sede do urbanismo cultural carioca que inspira artistas e invoca a ambivalência de sonhos e pesadelos metropolitanos.
Depois da Copa e dos Jogos do Rio, cidades se tornam o foco para todos os tipos de glória e aflição no país.
Entraves e caminhos para cidades autônomas – Porém, uma preocupação central para as eleições que se aproximam é que a grande visibilidade das cidades brasileiras não levou necessariamente a maior habilidade dos gestores e cidadãos para determinar seu próprio futuro.
Municípios continuam a depender de recursos federais para cobrir despesas locais e prefeitos precisam seguir elaborados planos regulatórios nacionais. Esforços anteriores de descentralização da governança urbana no Brasil – bem-recebidos por cidadãos, planejadores e pesquisadores em sua criação – têm, sem dúvida, resultados ambíguos em sua implementação.
O Estatuto das Cidades (2001) é um exemplo. Centrado em planejamento participativo (por meio de conferências, planos diretores participativos, colegiados e projetos de lei de iniciativa pública), ele presenteou os cidadãos com a oportunidade de ser parte na criação e administração da cidade.
Contudo, o Estatuto muitas vezes demanda participação local. Pequenos municípios então sofrem com poucos participantes, enquanto grandes municípios realizam eleições para limitar o número de militantes.
Os desafios em verbalizar publicamente as demandas locais variam desde problemas de auto-representação, em que discussões podem se tornar meramente palanques para aspirantes políticos, até uma percepção compartilhada de ameaça entre participantes que não têm casas legalizadas, empregos formais estáveis e, muitas vezes, permanecem em silêncio em reuniões para evitar confrontar poderes econômicos e políticos locais.
Em tais reuniões, é comum que residentes iniciem suas falas, quando o fazem, se apresentando da seguinte forma: “Eu não sou um arquiteto, eu não sou um planejador urbano, eu não sou um político, eu não sou um geógrafo, mas eu acho que é necessário…”
Dessa forma, ver a cidade coletivamente demanda um entendimento dos diferentes entraves que limitam o potencial da cidade.
O futuro das cidades – Nesse contexto, o Economic and Social Research Council do Reino Unido, em parceria com entidades de financiamento de pesquisa brasileiras, criou uma série de projetos de pesquisa colaborativos entre pesquisadores brasileiros e britânicos que aumenta nossa capacidade de ver a cidade brasileira, a partir da ciência global sobre cidades, para entender particularmente o Brasil metropolitano a emergir.
As pesquisas convidam a um entendimento, por exemplo, sobre a forma como as pessoas estão envelhecendo nas cidades brasileiras que são feitas pelos e para os jovens. Entender o envelhecimento no Brasil é não apenas urgente, dada a rapidez na mudança do perfil da população, mas ainda convidativo, pois, se o Brasil envelhece rápido, ele não envelhece sozinho, e cidades no mundo também enfrentam os desafios de envelhecer com saúde e têm muito a ensinar.
Pesquisas urbanas também podem analisar a maneira como sistemas de transporte podem reproduzir por décadas ambos segregação e integração social, não apenas em áreas metropolitanas como São Paulo, como também em municípios pouco visitados no Amazonas.
No Amazonas, por exemplo, os desafios na área de saúde vão além da ausência de profissionais qualificados ou das grandes filas em postos de saúde, o desafio é chegar até locais de atendimento, já que populações ribeirinhas no norte do país enfrentam isolamento.
É possível pesquisar ainda como divisões de gênero podem estruturar geografias de violência e de segurança doméstica e pública, e pesquisas permitem entender sugestões de mulheres vítimas de violência para o problema que as aflige diretamente.
Ciência e tecnologia podem também auxiliar no melhoramento de um dos gargalos principais das cidades brasileiras, o saneamento básico. O monitoramento do saneamento por meio de novas tecnologias pode permitir uma melhor qualidade de vida e até o controle de doenças. Essa ciência de cidades permite também compreender um dos grandes desafios para o país, a geração de alimentos, energia e água.
Como pensar em desenvolvimento econômico e social sem esses elementos que estão correlacionados? E pensar nesses elementos é olhar para o futuro das cidades, a forma como crianças e jovens lidam com as ameaças na oferta de alimentos, energia e água.
Interpretando a cidade em tempo real
Esse esforço pode ainda ser usado para interpretar a cidade em tempo real no momento em que ela se desenvolve. Mas o futuro é um artigo defeituoso. O horizonte de possibilidades futuras para a jovem mulher na favela pode focar nas próximas 24 horas. Em contraste, um morador de um condomínio de luxo pode registrar seu tempo de carreira de maneira precisa, calibrando cada década.
Assim, o desafio é reconciliar esses horizontes temporais de sistemas urbanos com imperativos políticos da metrópole democrática, onde futuros são medidos em ciclos que duram quatro anos.
Em nossas pesquisas, consequentemente, temos uma obrigação de tornar visíveis os acordos, negociações e alternativas que as próximas eleições municipais podem gerar para o futuro das cidades do Brasil. Enquanto o futuro da cidade pode ser unicamente brasileiro, nosso entendimento é de que esse futuro pode se beneficiar de colaborações que, por exemplo, explorem a diversidade de sistemas abertos que a cidades mundo afora trazem à tona.