RIO – Desde o fim de março, quando assumiu o comando do estado, Francisco Dornelles prefere se definir como “interino”. Porém, após críticas vindas dos próprios aliados de que estaria engessado na função, o governador em exercício anunciou na quinta-feira um plano para reduzir gastos e gerar receitas que amenizem a crise estadual, chamada por ele de trágica. Entre as medidas antecipadas, estão a migração de até dez UPAs controladas por organizações sociais para a Fundação Estadual de Saúde, cortes de até oito secretarias (começando pela fusão da pasta da Fazenda com a do Planejamento) e a venda de dois mil imóveis do governo, inclusive o Palácio de Brocoió, na ilha de mesmo nome, na Baía de Guanabara. Defensor de privatizações, Dornelles quer ainda fazer concessões para a iniciativa privada das redes de água e esgoto de áreas hoje exploradas pela Cedae na Barra, em Jacarepaguá e bairros da Zona Sul. O anúncio foi feito durante visita do governador ao GLOBO.
Sereno, Dornelles adotou um tom realista ao tratar do enxugamento da máquina administrativa. Adiantou que vai fazer um ajuste de até 30% no custeio e/ou nos cargos comissionados das secretarias, para chegar a uma economia de R$ 700 milhões anuais. Frisou que, com essas medidas, pretende aumentar a eficiência e a produtividade das pastas, mas que o valor terá pouco efeito diante do rombo de R$ 20 bilhões previsto para este ano nas contas públicas.
Ele deixou claro que a solução para os problemas do Rio passa principalmente pela renegociação da dívida com o governo federal, que só este ano custará R$ 9 bilhões, e pela reforma da previdência, cujo rombo previsto é de R$ 12 bilhões. Para evitar polêmicas, garantiu que não mexerá na área da cultura — numa clara referência às críticas enfrentadas pelo presidente interino Michel Temer após a extinção do Ministério da Cultura.
— Muitas vezes, as pessoas pensam que é o problema da máquina que representa mais economia. O enxugamento da máquina ocorre mais por eficiência administrativa do que por economia realmente. É um pingo d’água no oceano — afirmou. — A única coisa que tenho como certa é a manutenção, intacta, da Secretaria de Cultura. O Rio e Cultura são uma palavra só. De modo que essa é intocável. Os outros cargos todos estão sujeitos a eliminação.
CONVERSAS COM A ALERJ
O governador disse que deve fazer os cortes de secretarias por decreto. Nos bastidores, diz-se que as mais cotadas são as pastas de Envelhecimento Saudável, Dependência Química e Desenvolvimento Regional e Pesca. Ao ser cobrado sobre o enxugamento de fundações e autarquias do estado, ele afirmou que confia na interlocução com a Alerj — a proposta de extinção desses órgãos enviada pelo Executivo acabou engavetada pela Casa. Segundo Dornelles, os projetos foram enviados para a apreciação dos deputados de “forma imatura”:
— A gente só deve mandar a carta depois de receber a resposta. Tem que conversar primeiro.
Ele também falou sobre sua posição em relação a um projeto de lei que suspenderia por dois anos todos os benefícios fiscais concedidos pelo estado. Inicialmente, tinha defendido a medida na Alerj. Mas mudou de ideia, ponderando que havia sido muito radical:
— Até o vento, que não raciocina, muda de direção.
Dornelles classificou a situação do caixa estadual como caótica. Admitiu que permanece a incerteza sobre o pagamento em dia, no mês que vem, dos servidores da ativa e inativos. O governador afastado Luiz Fernando Pezão, que se licenciou para se tratar de um câncer, costumava dizer que estava atrás de “uma cartola para tirar um coelho”, referindo-se à dificuldade para encontrar recursos destinados aos salários. Dornelles afirmou que, atualmente, tem de “inventar o coelho da cartola a cada mês”:
— No mês passado, pagamos tudo. Este mês, vamos fazer força, mas está difícil.
Sobre a greve de professores, que já dura quase três meses, e a ocupação de 69 escolas, ele garantiu que não vai deixar a polícia entrar nos colégios. Dornelles disse esperar o fim do impasse com a chegada de Wagner Victer ao comando da Secretaria de Educação, após a saída de Antonio Neto.
— Aumento de salário não tem. Não temos recursos. Tem que estabelecer que nós liberamos as faltas do passado. Tem que estabelecer que, a partir de agora, quem faltar será descontado no salário.
Também como medida de austeridade, o governador entende que é possível reduzir os gastos, de R$ 1 milhão para até R$ 600 mil mensais por UPA, com a troca das OSs na gestão das unidades de saúde pelo modelo das fundações estaduais de direito privado. Ele disse que, a princípio, deve manter essas organizações nos serviços especializados.
— Não podíamos tirar as OSs dos hospitais, que são mais sofisticados. Mas as UPAs, acho que podemos administrar por um custo bem menor.
A substituição das OSs em pelo menos dez UPAs vai implicar, a médio prazo, uma restruturação da Fundação Estadual de Saúde, que já administra três unidades no Rio, incluindo o HemoRio, que enfrenta problemas financeiros, com falta de pagamento de terceirizados. Hoje, o custeio da fundação gira em torno de R$ 30 milhões mensais, que também vêm minguando diante dos repasses irregulares do tesouro estadual à saúde.
— Estamos aprimorando instrumentos de gestão da Fundação de Saúde e reconstruindo serviços — diz o secretário estadual de Saúde, Luiz Antônio Teixeira Júnior. — Nas boas OSs, a tendência é não mexer. A gente vai começar a reestruturação pelas organizações com que eu e a população não estamos satisfeitos.
CREMERJ ELOGIA MEDIDA
Hoje, as 30 UPAs do estado são geridas por seis organizações sociais diferentes. A secretaria não informou quais delas migrarão para a gestão da Fundação Estadual de Saúde.
A decisão do governo foi bem recebida por entidades de classe. O presidente do Sindicato dos Médicos do Rio, Jorge Darze, afirmou que a saída das OSs significa “um passo à frente”:
— A fundação é menos pior do que as organizações sociais, mas ainda é uma instituição de direito privado. A posição que o governador assume é bem-vinda.
O vice-presidente do Cremerj, Nelson Nahon, também se disse favorável:
— Se essa posição foi tomada, somos favoráveis a que o estado faça a gestão das unidades públicas. É a sua função. Temos recebido reclamações constantes de médicos sobre falta de aparelhagem e condições de trabalho sob a gestão das OSs.
Dornelles também falou sobre a segurança nas Olimpíadas e o aumento dos índices de criminalidade no Rio. Ele afirmou que confia na interlocução com o governo federal.
— Conto muito com a União e com a Força Nacional. Precisávamos de 70 mil homens (para os Jogos), mas até agora não se chegou a essa meta. Estamos discutindo. Estarei com o ministro da Defesa depois de amanhã, vou dar uma chorada para enfatizar a importância da segurança durante as Olimpíadas.
PRIVATIZAÇÃO DA CEDAE: ‘POR MIM, FARIA ISSO HOJE’
Defensor de concessões e parcerias com o setor privado, Francisco Dornelles anunciou que pretende privatizar o abastecimento de água e o serviço de esgoto na região da Barra e na Zona Sul. Hoje, o saneamento nessas áreas é feito pela Cedae. Segundo o governador, se a decisão dependesse apenas dele, o sistema seria concedido imediatamente:
— O que puder ser privatizado vai ser privatizado, inclusive a Cedae. Nós temos a intenção de fazer um sistema de concessão, transferindo para o setor privado a distribuição de água e a exploração de esgoto na Barra e na Zona Sul.
No entanto, Dornelles reconheceu que o “martelo não está batido” nem na cúpula do governo nem na própria Cedae:
— Eu estou dizendo que é o caminho que eu queria seguir. Tem posições muito contrárias a esta, sob o fundamento de que a receita que a Cedae recebe para a exploração da água na Barra e na Zona Sul é importante para que ela possa fazer realmente investimentos em áreas mais pobres do Rio, como a Baixada Fluminense. Contudo, acho que muitas vezes o que receberíamos, caso a concessão fosse feita, daria para fazer investimentos nessas áreas com mais eficiência. Se dependesse de mim, faria isso hoje — ressaltou.
Nos bastidores, a estimativa é que a negociação do serviço apenas na região da Barra, do Recreio e de Jacarepaguá poderia render cerca de US$ 4 bilhões (cerca de R$ 14 bilhões) para o caixa do estado. Quem é contra a medida alega que a companhia não recebe repasses do Tesouro (logo, não dá despesa), tem baixo valor de mercado e dívidas, como um grande passivo trabalhista. Em 2015, a companhia contribuiu, pela primeira vez, com R$ 60 milhões para o Tesouro estadual, recursos relativos ao exercício de 2014. O repasse está previsto na lei federal que dispõe sobre o pagamento de dividendos a acionistas — o governo do estado detém 99% das ações da Cedae.
Um dos defensores da privatização é o presidente da Alerj, Jorge Picciani (PMDB). Do lado contrário, está o próprio governador licenciado Luiz Fernando Pezão, que já declarou ser contra a medida. Em entrevista ao GLOBO no início do ano, Pezão explicou os motivos pelos quais não privatizaria a Cedae nem parte dos seus serviços. Segundo ele, a arrecadação da Cedae com o serviço prestado na Barra faz parte das garantias de empréstimos que o governo fez para construir a Estação de Tratamento de Guandu II (ampliação da estação de tratamento), que vai permitir fornecer água para toda a Baixada. Na época, Pezão informou que estava repassando R$ 1,5 bilhão para fazer Guandu 2 e que havia nove grandes obras da Cedae em andamento. Segundo ele, a empresa não pode ser privatizada porque o estado tem R$ 3,5 bilhões para receber do governo federal.
ESPECIALISTAS DEFENDEM REGULAÇÃO
A crise financeira também afeta a Cedae. No ano passado, a companhia teve um lucro líquido de R$ 248,8 milhões, 45,9% a menos que os R$ 460 milhões registrados em 2014. “O panorama econômico do Brasil não é favorável, e devemos esperar que o quadro recessivo perdure em 2016”, diz o Relatório de Administração e Demonstração de Atividades Financeiras 2015, da Cedae.
Para especialistas em saneamento e hidrologia, a concessão pode ser benéfica para os usuários dos serviços de esgoto e água, mas é essencial que o estado seja eficiente em regular as concessionárias privadas.
Para Paulo Carneiro, pesquisador do Laboratório de Hidrologia da Coppe/UFRJ, a sociedade deve ter o poder de, junto com as agências governamentais, regular o serviço prestado pelas concessionárias. Ele também ressalta que a Cedae “não tem demonstrado capacidade de fazer os investimentos necessários”:
— Algumas concessões já estão em curso. A Cedae não tem demonstrado capacidade de fazer os investimentos necessários. As razões, eu não sei. Eles estão anunciando investimentos para ampliar a Estação de Tratamento do Guandu. Mas o fato é que estamos há décadas sem conseguir aumentar o percentual de esgoto tratado. É preciso avançar nisso e universalizar esse sistema. Isso tem que ser feito com regulação. A gente tem que ter um órgão regulador forte e transparente.
Já para Alceu Galvão, pesquisador do Instituto Trata Brasil, a necessidade de regulação está entre as premissas fundamentais para a concessão, mas que este trabalho ainda é muito incipiente no Estado do Rio. Ele também disse que o desempenho da Cedae não é satisfatório:
— A Cedae é tida como uma das empresas menos transparentes do Brasil. Você abre a possibilidade de mostrar que há chances de ter mais resultados e avançar na universalização dos serviços. Quando você olha para Niterói e São Gonçalo, que são vizinhos, vê o serviço entregue à iniciativa privada em Niterói universalizado e o outro, em São Gonçalo, com problemas e obras que não foram terminadas — declarou.
Divulgado em março, um levantamento feito pela ONG Trata Brasil sobre serviços de saneamento nas cem maiores cidades brasileiras mostra que o Rio — onde a atividade cabe, principalmente, à Cedae — aparece na 50ª posição. Entre as capitais, ficou em 11º lugar. Dentro do próprio estado, a capital fica na quinta colocação, atrás de Niterói, Petrópolis, Campos e Volta Redonda, onde grupos privados cuidam da água e do esgoto. Nas áreas atendidas pela Cedae no estado, apenas 40% do esgoto são tratados.
Fonte: O Globo