Há 80 anos investindo em gestão e tecnologia para abastecimento de água, Israel se tornou uma referência em uso eficiente e sustentável dos recursos hídricos. O país está localizado em uma das áreas habitadas mais secas do mundo, o que o obriga ao uso de técnicas caras como a dessalinização da água do mar. Essa tecnologia, por sinal, chegou a ser anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) para abastecer o semiárido nordestino.
Atualmente, a ideia parece ter saído do radar governamental. Mas a explicação pode estar na visão dos próprios israelenses sobre a técnica
Diego Berger, coordenador de projetos internacionais da Mekorot (Companhia Nacional de Água de Israel), afirma que o Brasil não precisa dessa tecnologia, já que no nosso país há água suficiente. “O problema aqui é cultural, vocês têm uma cultura da abundância. E, quando você dessaliniza, você está reconhecendo o fracasso da gestão”, diz.
Para ele, o problema brasileiro está no desperdício e na falta de uma melhor gestão. “Com gestão, acredito que vocês vão perceber que não precisam da última tecnologia [dessalinizar a água do mar]. Vocês precisam de uma tecnologia adequada para a realidade de vocês.”
Berger –que é argentino– explica que Israel reutiliza 85% do esgoto, que responde por metade da água usada para irrigação na agricultura. Diz também que as perdas no país hoje representam apenas 10% –no Brasil esse índice, em 2016, chegou a 38% da água potável, segundo relatório da Rede Brasil do Pacto Global da ONU (Organização das Nações Unidas).
“Todo mundo vai em Israel para comprar tecnologia porque acha que tem solução rápida. A gente não está vendendo um programa, um software. Todas as políticas são de longo prazo. Você pode ir lá, comprar uma tecnologia e melhorar um pouco. Mas você tem de fazer a gestão, e isso é a longo prazo”, diz.
Em visita a Maceió na quarta-feira (15) para conversar com produtores e políticos, o diretor concedeu entrevista ao UOL para falar como Israel pode ajudar o Brasil e indicar caminhos para o país vencer a quase eterna crise hídrica do sertão.
“Você tem de ter aqui redução das perdas, utilizar bem as coisas, educar as pessoas”, aponta Berger, deixando um conselho: “Vocês têm de resolver isso enquanto tem o recurso”.
UOL – O que Israel pode trazer e ensinar ao Brasil na questão hídrica?
Diego Berger – Israel é um semiárido, com média de chuva de 500 mm e regiões mais ao sul com 650 mm [por ano]. A gente tem uma história de 80 anos de desenvolvimento do setor hídrico, e é com isso que a gente pode ajudar. Mas como fazer a gestão? A tecnologia ajuda, mas, se você não tem uma gestão forte, você não pode fazer nada.
E aqui temos boa gestão?
O problema aqui é cultural. Vocês têm uma cultura da abundância. Em Israel, a gente sempre fala que foi abençoado com a falta de recursos, então a gente tem de usar a cabeça. E uma diferença: você vê o valor que as pessoas dão aos recursos, não só à água. Se você tem abundância, não valoriza. O começo de tudo é a gestão, ensinar às pessoas o valor necessário da água.
Mas nosso semiárido tem abundância se comparado a Israel?
Aqui tem mais água. Lá, só metade da água usada agora é subterrânea. A gente está usando mais a água da dessalinização porque já não temos água natural. E como se faz a gestão? A gente reutiliza 85% da água de esgoto, que representa metade da água da usada na agricultura. Somos o país do mundo que tem o maior percentual. Se você não tiver uma gestão mais adequada, você não pode usar água mais cara de dessalinização, não pode introduzir novas tecnologias, porque tudo isso é caro. Então você tem de ter, aqui, redução das perdas, utilizar bem as coisas, educar as pessoas. Em tudo isso a gente pode ajudar.
Então o senhor não aconselha a usar água do mar aqui no Brasil?
Água de dessalinização é a mais cara que tem. A produção é por volta de 1 dólar o metro cúbico [1.000 litros]. A pergunta é: quando você deve colocar uma água tão cara na rede? Você não pode dessalinizar sem fazer outras coisas. Quando você dessaliniza, você está reconhecendo o fracasso da gestão.
Então pensar isso no Brasil seria um reconhecimento de fracasso?
Primeiro tem fazer uma gestão de tudo e depois pensar em trazer água do mar. Deve-se reduzir as perdas. Antes, lá em Israel, a gente teve um debate: quanto tem de ser a perda máxima nas cidades para se permitir a dessalinização? A gente decidiu que não poderia ser mais de 15%, senão você está botando água muito cara dentro da rede, e ela vai para o subsolo. Em 2015, esse índice era 15%; e agora está em menos de 10%.
O que então o senhor aconselha ao Brasil?
Tem que educar, entender qual a gestão adequada e fazer todos entenderem o valor da água.
Mas isso leva um bom tempo.
Não existem soluções rápidas. Todo mundo vai em Israel para comprar tecnologia porque acha que tem solução rápida. A gente não está vendendo um programa, um software. Todas as políticas são de longo prazo. Você pode ir lá, comprar uma tecnologia e melhorar um pouco. Mas você tem de fazer a gestão, e isso é a longo prazo.
Qual seria o caminho a seguir aqui?
A gestão fará saber qual a tecnologia adequada. Com gestão, acredito que vocês vão perceber que não precisam da última tecnologia [dessalinizar a água do mar]. Possivelmente pode ter lugares isolados que precisem de dessalinização de água do mar ou do subsolo, mas a solução tem de incluir uma mistura de coisa. Vocês precisam de uma tecnologia adequada para a realidade de vocês.
Aqui temos poços dessalinizadores de água subterrânea, vários centros de pesquisa estudam o tema. Temos pessoas capacitadas para melhorar essa gestão, não?
Tem pessoas que sabem fazer, sim. Nos governos, nos estados, há claramente pessoas que sabem e podem ajudar A gente tem uma história de mais de 80 anos nesse processo. O que a gente fez, a gente explica para os outros não cometerem os mesmos erros.
O presidente Bolsonaro foi a Israel recentemente. Existe algum convênio assinado com Israel sobre o tema?
Tem um acordo de cooperação, e a gente vai a cada estado saber se querem fazer algo em conjunto.
E o senhor já viu que aqui tem água suficiente para abastecimento e agricultura?
Eu estava conhecendo aqui [em Alagoas] o Canal do Sertão [pequena transposição do rio São Francisco que leva água a municípios do sertão e agreste alagoano]. A água que tem nesse canal é a mesma que nós usamos para toda a agricultura em Israel –a outra metade é de esgoto. E lá vivem 9 milhões de pessoas [Alagoas tem 3,3 milhões]. Ou seja, vocês podem fazer muita coisa, vocês têm muita água. E podem fazer muita coisa em todo o Nordeste. O Brasil é um dos países com mais água do mundo.
O que então falta e o que sugere para começarmos?
O problema é cultural, a gestão é uma reflexo da cultura. Você deve estar sempre buscando a melhor forma de fazer essa gestão. Com os anos, você tem mais gente, mais consumo, mais poluição. Vocês têm de resolver isso enquanto tem o recurso. O problema do esgoto, por exemplo. Nem todo o Brasil está conectado à rede de esgoto. Qual a influência na qualidade de vida das pessoas não ter esgoto e água em todo lugar? Isso tem uma influência na expectativa de vida, está interligado com a economia.
O que poderia ser feito aqui no nosso semiárido semelhante ao que foi feito em Israel?
Em Israel, o setor hídrico é fechado, não usamos orçamento do estado. Todo dinheiro vem da conta de água, mas todo mundo paga mesmo preço –não importa se é água de dessalinização ou do subsolo. Socialmente esse modelo é muito melhor, mas você parte do princípio de que um terço desse dinheiro é para desenvolver novos projetos. Todo planejamento é independente do governo. Senão for assim, você vai ter sempre uma emergência que vai tirar dinheiro de lá.
Pelo que o senhor diz, ciência e gestão são fundamentais para o país superar essa dificuldade hídrica?
Tem de investir em tudo, mas você só vai investir em tecnologia quando tem necessidade. Quando foi inventado em Israel a irrigação por gotejamento? Quando foi necessário, pela escassez, não por outra coisa. Onde você tem a escassez, tem gente que vai estudar para tentar encontrar soluções.
Fonte: UOL