Candidato do PV à Presidência, Eduardo Jorge foi eleito deputado federal quatro vezes. Em São Paulo, foi secretário de saúde e meio ambiente de prefeituras do PT e do PSDB. Ele se diz um “socialista, só que democrático”, mas coerente com o papel que identifica para o PV: abrir espaço nos governos de diferentes tendências para a causa ambiental. Médico sanitarista, vai na contramão da maioria dos candidatos, que teme desagradar líderes religiosos, e defende a legalização do aborto parar eliminar os riscos dos procedimentos clandestinos.
Além do senhor, Marina Silva (PSB) se apresenta como uma candidata verde. Qual a diferença entre as duas candidaturas?
O PV é o representante no Brasil dessa corrente de partidos verdes que surgiu no mundo na década de 1960, mas não somos donos de um monopólio. Ficamos felizes de ver a causa ambiental incorporada por outros partidos. No caso da Marina, é natural por ela ser ambientalista. É verde, mas está num partido vermelho, socialista. Não sei que cor essa mistura vai dar. O PV é pós-capitalista e pós-socialista. Eu continuo socialista, só que agora democrático.
O senhor fez campanha para Marina em 2010 pelo PV, foi secretário em São Paulo da prefeitura de Luiza Erundina, hoje no PSB, e também participou dos governos de Marta Suplicy (PT), José Serra (PSDB) e Gilberto Kassab (PSD). Como o eleitor deve interpretar isso para definir sua identidade ideológica?
Em primeiro lugar, o eleitor deve analisar a história de cada pessoa. Sou coerente com o que penso, mas não sou um fóssil. Minhas opiniões políticas evoluíram ao longo do tempo. Aos 17 anos, entrei no Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Fui fundador do PT, de onde saí em 2003 quando percebi que o partido colocava seus interesses acima dos do país. No PV, entendi que o capitalismo e o socialismo não respeitam os limites da natureza. Isso desencadeou o problema econômico e social mais grave que a humanidade enfrenta: a crise climática que ameaça a vida. O PV então pode participar de governos socialistas ou capitalistas, desde que abram espaço para nossas ideias. É o que tem acontecido na Alemanha.
Após concorrer à presidência, em 2010, Marina deixou o PV queixando-se de falta de democracia interna. O que mudou no partido?
Eu estava lá na fatídica reunião de diretório em que o noivado não deu em casamento. A disputa não foi por democracia, foi por poder. Tanto o grupo de Marina quanto a direção queriam o poder desse pequeno partido. Eu disse que era um absurdo dividir um movimento ainda tão frágil no Brasil, como o ambientalista. Deu-se a impressão que foi culpa só da direção, mas os dois lados foram responsáveis. Minha candidatura propõe uma reforma política com uma nova realidade para os partidos, inclusive para o PV. Os partidos precisam se voltar para as bases, nos municípios. Hoje, o presidencialismo imperial obriga os partidos a ficarem colados em Brasília.
O senhor foi um dos criadores do Sistema Único de Saúde, uma das principais queixas dos brasileiros. O que precisa ser feito para aperfeiçoá-lo?
Das conquistas sociais da Constituição de 1988, a criação do SUS é a mais generosa. Garantir que a camponesa e o industrial tenham acesso a um sistema universal de saúde num país tão desigual é uma reforma de longo curso. Muita coisa foi feita, é preciso reconhecer esse esforço do Brasil, que não é de um governo. Agora, a mãe na fila do hospital com uma criança febril não tem a obrigação que eu tenho de reconhecer isso. O povo tem razão de reclamar. Precisamos realmente de mais recursos do orçamento para a saúde. Em segundo lugar, é preciso gastar melhor e fazer com que outras políticas públicas dialoguem com a saúde. O ar da cidade, por exemplo, tem que ser limpo. A política de transportes tem que reduzir a dependência do petróleo e parar de envenenar as pessoas. O mesmo em relação a saneamento ou controle de agrotóxicos, que significam mais saúde e menos pressão sobre o SUS. Por fim, o mais importante é investir no Programa de Saúde da Família (PSF).
O governo atual traz médicos do exterior por falta de profissionais. Por que um país com os recursos do Brasil não consegue formar médicos para um programa tão ambicioso quanto o SUS? O que o senhor faria de diferente?
O Ministério da Saúde e o Ministério da Educação, um olhando para o outro na Esplanada, nunca conversaram. Seguiram formando médicos como se o SUS não existisse. Uma universidade pública forma 200 médicos e não se consegue nenhum deles para o PSF. É claro que formar um médico não se faz da noite para o dia. Leva oito anos, contando a residência. Ninguém pode prometer isso em quatro anos, mas é preciso começar. O governo atual ficou 12 anos e não fez nada, assim como o do Fernando Henrique. A inércia de Brasília é a responsável por essa situação. Eu quero criar uma carreira nacional de médicos, enfermeiros e agentes comunitários de saúde com bases municipais a partir de um fundo federal. Isso já sinalizaria para os jovens nas universidades que terão na carreira de médicos de família a mais valorizada.
O senhor é a favor de serviço público temporário obrigatório para médicos formados em universidades públicas?
Não só defendo como apresentei esse projeto de lei quando era deputado. Ninguém me apoiou. Fui fragorosamente derrotado na comissão de seguridade social. Até a União Nacional dos Estudantes foi lá falar mal de mim. Mas ainda acho que seria um retorno obrigatório ao povo brasileiro, que banca a universidade pública. Deveria ser um elemento essencial não só para médicos, inclusive porque é bom para a formação dos estudantes, inclusive do ponto de vista ético e de valores. Deveria ser uma contrapartida obrigatória para formandos de vários cursos. Na agricultura, os agrônomos poderiam dar grande contribuição. No direito, poderiam atender os cerca de 40% de encarcerados amontoados nas prisões que ainda não viram um advogado.
Sua proposta de descriminalizar o aborto também contempla oferecer os procedimentos a todas as mulheres interessadas no SUS?
Deixar de considerar criminosas entre 700 e 800 mil mulheres que fazem aborto por ano é acabar com uma lei medieval em pleno século 21. É uma coisa inacreditável que o Brasil tenha uma lei machista e cruel como essa para punir mulheres que, por algum motivo, se submetem ao risco de procedimentos clandestinos. Revogar essa lei é uma questão urgente de saúde pública. Duas vezes apresentei esse projeto na Câmara dos Deputados e fui derrotado. Minha defesa não é de hoje. Defendo a criação de critérios para que as mulheres sejam atendidas no sistema de saúde público, de forma segura. Isso permitiria também a orientação delas sobre prevenção de gravidez. Na prática, salvamos a vida dessas mulheres e, ao longo do tempo, vamos reduzindo o número de abortos, mostrando que não é assim que se faz planejamento familiar. Temos que fazer também educação sexual nas escolas de ensino médio para estancar a epidemia de gravidez precoce. O Rio de Janeiro fez uma grande mobilização perguntando às autoridades onde está Amarildo (morador da Rocinha assassinado por policiais da UPP local), mas não fez o mesmo por Jandira (jovem morta durante um aborto que teve o corpo carbonizado). O que mostra um certo preconceito.
O senhor chamou de hipocrisia a discussão sobre o aborto no debate dos presidenciáveis promovido pela Igreja Católica, em Aparecida. Como vê a influência da religião na política?
Venho de uma família com formação católica. Fui marxista revolucionário, que prega o ateísmo, mas me desiludi com isso e hoje sou um espiritualista livre, não obedeço a nenhuma hierarquia religiosa. Quero registrar que o ambiente na CNBB foi bastante democrático. Dom Raymundo Damasceno me recebeu de uma forma gentilíssima e inclusive a forma aberta como eu pude me manifestar mostra uma evolução positiva na Igreja Católica, acho já decorrente das posições mais razoáveis, mais humanas do Papa Francisco. Posso não concordar com ele em tudo, mas acho que ele tem sido uma influência positiva na Igreja Católica do mundo e do Brasil. O nosso partido acha que a religião é um fato social importantíssimo na vida das pessoas, mas que o Estado democrático tem que ser absolutamente laico. Nesse ponto, volto ao Papa Francisco. Ele próprio diz que o Estado laico é a melhor garantia do respeito à democracia e a todas as religiões. Nesse ponto, penso como o Papa Francisco.
Jornal O GLOBO