Infraestrutura Sentenças exigem abastecimento ininterrupto, indenizam danos morais e responsabilizam gestores
Uma moradora da periferia de São Paulo conseguiu recentemente na Justiça a garantia de que não terá mais o fornecimento de água interrompido na sua residência pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). Ela alegou no processo que as torneiras de sua casa ficavam secas diariamente desde o dia 26 de maio das 20h30 às 5h30, apesar de estar com o pagamento de suas contas em dia. Segundo a ação, ela não tinha caixa d’água na residência, o que a deixava sem reservas.
Apesar de não haver um racionamento de água formalmente instituído pelo governo do Estado de São Paulo, consumidores cansados das constantes interrupções no fornecimento têm recorrido à Justiça para entrar com medidas para garantir o abastecimento.
As sentenças em torno da falta d’água mostram que esta é uma crise de longo prazo em parte do Estado de São Paulo, que há de fato racionamento de água em algumas localidades – inclusive em alguns bairros periféricos da cidade de São Paulo – e que existem sim responsáveis, o que envolve desde as próprias concessionárias como também as autoridades públicas.
Os juízes, além de proibir a suspensão constante do fornecimento, chegam a dar indenizações por danos morais sofridos, a destacar que municípios e o Estado deveriam estar melhor preparados com investimentos, e a até mesmo assegurar que sejam enviados caminhões-pipa para bairros com maiores cortes de água. Parte das decisões favoráveis a consumidores guarda relação com o fato de que, se não há um racionamento decretado, é dever do serviço público fornecer de forma eficaz, segura e contínua.
Ao analisar duas ações de dois moradores do município de Mineiros do Tietê, o juiz Guilherme Eduardo Mendes Tarcia e Fazzio, da 4ª Vara Cível de Jaú, reconheceu que “é notória a ocorrência de períodos de estiagem, no ano de 2014 em situação mais grave e generalizada do que em 2013”. Contudo, segundo as decisões do juiz, “é evidente que ao gestor público é inexorável a necessidade constante de aferir a disponibilidade e volume de captação da água em proporção ao crescimento populacional, bem como implementar políticas públicas voltadas a minimizar vazamentos, coibir desperdício, ou pelo menos rodízios de abastecimento, enfim, uma eficiente administração dos Recursos Hídricos que permita em períodos de maior ou menor estiagem garantir tão indispensável serviço em prol da população”.
Em consequência disso, Fazzio condenou o município de Mineiros do Tietê e a Águas de Mineiros de Tietê a indenizar os dois moradores em R$ 2 mil por danos morais, pelos transtornos. Acrescentou que “a interrupção do serviço de água por relevante período (dias) implica transtornos anormais, considerando que a água é vital para todas as necessidades básicas do ser humano (alimentação, higiene etc.), especialmente na vida moderna em que o acesso à água potável e limpa é difícil”.
O advogado Rodolfo Buldrin, que prestou assessoria aos moradores de Mineiros do Tietê, afirma que os problemas com fornecimento ocorrem não só em Mineiros do Tietê, como em Jaú e Dois Córregos. E que essas secas já ocorrem desde 2012. Ele tem seis ações que discutem o tema. “Tem havido falhas na prestação de serviços. E nesse caso é um serviço essencial e que exige uma continuidade”, diz.
A advogada Flávia Lefèvre Guimarães, sócia do Lescher e Lefèvre Advogados Associados e conselheira do Proteste Associação de Consumidores, ressalta que as contas de água e de luz têm um valor destacado que teria que ser gasto com manutenção e distribuição. “Porém, as empresas infelizmente não cumprem o que está no contrato”, diz.
No caso da moradora da periferia de São Paulo, no dia 29 de dezembro, em pleno recesso do Judiciário, o juiz Jorge Alberto Quadros de Carvalho Silva, da 3ª Vara Cível de São Paulo, determinou que a Sabesp se abstenha de suspender o fornecimento de água em qualquer período do dia sob pena de multa diária de R$ 200, “ressalvada a hipótese de racionamento coletivo”. A decisão confirmava a liminar que já tinha sido obtida que vedava a suspensão do fornecimento de água. Com base nisso, a companhia instalou um aparelho que impede a suspensão de fornecimento de água na residência da consumidora.
Alguns juízes, ainda que reconheçam que o Estado de São Paulo passa por um período de estiagem, acabam por atribuir responsabilidade também ao município e à concessionária de águas pela má administração da situação.
Em outubro de 2014, o Tribunal de Justiça de São Paulo condenou a prefeitura de Vargem Grande do Sul a pagar R$ 10 mil de indenização por danos morais a uma moradora da cidade em um bairro afastado, por causa das constantes interrupções no fornecimento de água. A moradora alegou que estava vivendo em condições insalubres e que por não ter água houve proliferação de pragas no imóvel, em decorrência da sujeira.
Ao analisar o caso, o desembargador Jacob Valente ressaltou na sua decisão que “é certo que em períodos de longas estiagens, sem o volume adequado de chuvas sobre os mananciais e reservatórios, como o que vem ocorrendo na região metropolitana de São Paulo, a oferta de água se torna escassa, de modo que a Administração deve fazer os investimentos necessários e organizar serviços para a garantia de fornecimento mínimo para a população”. A decisão ainda obriga que o município forneça água por meio de caminhão-pipa até que a seca se normalize.
Para o juiz, “embora indesejável”, o racionamento pode ser feito em casos extremos. Contudo, ele ressalta que, nos períodos que o imóvel tiver bombeamento de água, deve haver a garantia de uma pressão mínima necessária para alcançar a caixa d’água, sem uso de bombas complementares. A prefeitura de Vargem Grande do Sul recorreu e informou, por meio de nota, que o Serviço Autônomo de Água e Esgoto tem “prontamente atendido” a todas as propriedades que precisam de caminhão-pipa.
Em outros processos, é possível notar que há dificuldades das concessionárias de municípios, que chegaram a decretar oficialmente o racionamento, em garantir água mesmo quando os estabelecimentos são considerados prioritários.
Um processo movido por uma clínica médica em Itu em novembro do ano passado mostra os problemas que enfrentou. A clínica exigia abastecimento por meio de caminhão-pipa, com regularidade e condenação da concessionárias ao pagamento dos valores que afirma ter gasto. O juiz Marcos Soares Machado, do juizado especial cível do foro de Itu, concedeu tutela antecipada (espécie de liminar) para que a concessionária passasse a abastecer a clínica. Ele também intimou o município de Itu, que concedeu os serviços para a Águas de Itu, empresa do grupo Bertin, que tem a concessão por 30 anos.
“Houve registro de abastecimento insuficiente, sobretudo considerando que se trata de uma clínica médica”, diz o juiz na sua sentença. Ele, porém, não fixou multa à empresa, porque não observou “má fé” da concessionária Águas de Itu, “senão dificuldade em equalizar o abastecimento diante da crise hídrica sem precedentes”. Segundo a Águas de Itu, é aguardada realização de audiência para tentativa de conciliação.
Nem sempre os juízes concedem aquilo que é pedido pelas pessoas que entram com o processo do não fornecimento, porque entendem que garantir abastecimento para alguns em detrimentos de outros consumidores geraria distorções na distribuição de água entre todos os cidadãos do município que se encontram na mesma situação.
No segundo semestre de 2014, uma pessoa com necessidades especiais, que estava há mais de três meses sem fornecimento pela concessionária do município de Itu, requereu a concessão de tutela antecipada para obrigar a empresa a lhe fornecer água todos os dias, sob pena de multa diária. O juiz Fernando França Viana, da 3ª Vara Cível de Itu, que assina a sentença, negou o pedido. Justificou sua decisão dizendo que é “público e notório” que Itu tem enfrentado diversos problemas relacionados à falta d’água. Mas não lhe concedeu a tutela, porque entende que “é de conhecimento geral que este problema não atinge apenas o autor, mas toda a população.
“Por ora, não há como indicar as causas do problema de abastecimento. Todavia, é inegável que, neste momento, é impossível fornecer água para toda a população de maneira regular, o que obriga os órgãos públicos a promover o racionamento”. Para o juiz, a “pretensão do autor, na realidade, provocaria o caos na distribuição de água, em prejuízo de todos os cidadãos ituanos e poderia gerar a paralisação total do serviço”. Para o juiz, a “atual situação exige um sacrifício de todos os munícipes”.
Em sua defesa, a Águas de Itu informou, por meio da assessoria de imprensa, que, à época da vigência do racionamento, a Secretaria de Saúde coordenou o cadastramento de idosos e acamados da cidade para o atendimento com o uso de caminhão-pipa, independentemente do abastecimento pela rede, em intervalos não superiores a 48 horas. Para que o idoso ou acamado fosse atendido, precisava fazer parte desse cadastro.
A Sabesp, a Águas de Mineiros do Tietê e o município de Alto Tietê foram procurados, mas não retornaram até o fechamento da reportagem. A prefeitura de Itu informou que “já apresentou sua defesa e a questão receberá a devida apreciação”. Para a prefeitura, qualquer pronunciamento acerca do mérito pode ser precipitado e influenciar no julgamento. O racionamento durou entre fevereiro e dezembro de 2014. Não há racionamento em vigor no momento.
Valor Econômico