SÃO PAULO — O Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) está dando suporte ao discurso do governo federal sobre clima, afirmando que o Brasil está em vias de cumprir sua meta voluntária de corte de emissões de gases-estufa para 2020. Para defender essa tese, um documento divulgado na segunda-feira pelo centro de pesquisa ignora o descumprimento da meta assumida pelo do Brasil de reduzir o desmatamento em 80% e incorpora uma manobra contábil apelidada de “pedalada florestal”, criada ainda no governo Dilma , para omitir a taxa bruta de emissão do país.
O GLOBO apurou que os números usados no documento são os mesmos que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tem apresentado em encontros com autoridades de governo e investidores no exterior. Eles constam de slides que ele exibiu, por exemplo, no Wilson Center, centro cultural em Washington, nos EUA.
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Os dados compilados pelo Ipea constam de um dos volumes da publicação Cadernos ODS, em que o instituto monitora o status dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU e indicadores relacionados. O trabalho foi divulgado ontem por comunicado segundo o qual “o Brasil deve cumprir meta voluntária de redução das emissões de CO2 em 2020”. Segundo as autoras do trabalho, Enid Rocha e Valeria Rezende, a chance de o país encerrar o ano que vem cumprindo sua palavra “é bastante factível, se não ocorrerem alterações bruscas na trajetória percorrida nos últimos anos, até 2015”.
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O documento lista uma série de projeções sobre as emissões do Brasil, baseados na as taxas de emissão até 2015, período após o qual o desmatamento, a principal fonte de CO2 no país, voltou a subir. As autoras também ignoram o dispositivo da Política Nacional sobre Mudança do Clima, lei de 2009 exigindo “redução de 80% dos índices anuais de desmatamento na Amazônia Legal em relação à média verificada entre os anos de 1996 a 2005”.
A meta para 2020 ficaria então, em 3.925 km2, mas no ano-calendário do desmatamento de 2017/2018 o Brasil desmatou quase o dobro disso, 7.536 km2. Os números oficiais do período 2018/2019 ainda não saíram, mas projeções apontam para mais de 10.000 km2.
O dispositivo que regulamenta a lei de 2009 foi revogado pelo presidente Temer, mas o veto não tem valor para efeito diplomático, já que o Brasil havia protocolado este objetivo como meta voluntária em negociações climáticas internacionais.
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Em mensagem ao GLOBO, o Ipea defendeu a metodologia do estudo e afirma que “baseou sua análise das emissões de gases de efeito estufa nos dados oficiais do Sistema de Registro Nacional de Emissões (Sirene), do MCTIC (Ministério da Ciêcia, Tecnologia, Inovação e Comunicações)”. Segundo o instituto, o ministério também é a “fonte dos dados oficiais sobre desmatamento utilizados no estudo, computados pelo Inpe.”
Pedalada florestal
Ainda que a questão do desmatamento seja destacada da contabilidade das emissões de gases do efeito estufa propriamente ditas, a alegação de que o Brasil caminha para cumprir sua meta de 2020 é controversa. O principal ponto de questionamento é que um cenário otimista requer o uso do conceito de “emissões líquidas” de CO2, que considera as “emissões brutas” do país menos as “remoções” das árvores que sugam o gás nas florestas brasileiras.
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Em 2009, porém, antes do segundo inventário, a inclusão dessas áreas protegidas não estava clarificada no primeiro inventário, dando a entender que as emissões líquidas a serem computadas consideravam remoções apenas de florestas secundárias, projetos de reflorestamento e outras terras que não eram floresta primária. Em anos de desmate alto, acima de 20 mil km2, as emissões brutas não diferiam tanto das líquidas, mas agora diferem.
Essa manobra não é proibida pelo IPCC (painel do clima da ONU), mas não chegou a ser referendada por ele, e foi adotada ainda no governo Dilma. Ela representa, no entanto, uma mudança nos parâmetros da promessa de controle de emissões do Brasil, depois de ela ter sido feita.
O Ipea afirma estar respaldado no IPCC para fazer o cálculo. “O Ipea não produziu nenhuma metodologia própria sobre as emissões de gases de efeito estufa para elaboração do Caderno ODS 13 [nome do estudo], tendo baseado sua análise em dados oficiais produzidos por instituições com reconhecimento científico nacional e internacional”, informou a instituição.
Meta tímida
Outra crítica feita por ambientalistas é que, mesmo que a do governo seja aceita, a própria meta voluntária do Brasil já era pouco ambiciosa.
“Tem muito artifício na matemática e na aritmética para dizer que o Brasil já fez a lição de casa”, afirma Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima, coalizão de ONGs que monitora políticas públicas do setor.
Em comunicado nesta segunda-feira, a ONG lembra o país protocolou sua promessa de controle das emissões na cúpula do clima de 2009, na Dinamarca, usando um recurso tortuoso para determinar seu compromisso. O país prometeu uma redução das emissões de gases de efeito estufa entre 36,1% e 38,9% das emissões “projetadas para 2020”.
Essa projeção levou em conta que o país cortaria bastante o desmatamento, mas cresceria bastante o CO2 de energia e transporte, chegando ao fim da década em 3,24 bilhões de toneladas de CO2. Este seria o número-referência para o corte de 36,1% a 38,9%, fruto de projeção que levou em conta premissas “exageradas”, assumindo que a economia do país cresceria 5% ao ano desde então e que toda a demanda energética suplementar seria atendida com combustíveis fósseis, como se o país não pudesse mais construir hidrelétricas, por exemplo.
“Os compromissos da Política Nacional para Mudanças do Clima em 2020 provavelmente terão seu limite excedido em pelo menos 2,3%, mesmo que a meta original tenha sido calculada sob premissas excessivamente generosas”, escreve Rittl. “E a meta de 2020 para o desmatamento da Amazônia será estourada por larga margem.”
O Ministério do Meio Ambiente foi procurado pelo GLOBO para comentar a avaliação do Observatório do Clima, mas não respondeu.