“É a primeira vez que pessoas que realmente estão na periferia estão tomando o poder no XI de Agosto”, diz Letícia Chagas, estudante da tradicional Faculdade de Direito da USP.
Em 1903, quando o Brasil vivia a República Velha e as oligarquias de São Paulo e Minas Gerais se revezavam no comando do país, estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na capital paulista, fundaram o primeiro centro acadêmico do país, o XI de Agosto. A São Francisco, como a faculdade é conhecida, incorporada à USP em 1934, já era um espaço de formação de parte da elite política e jurídica nacional e continuaria a desempenhar esse papel nas próximas décadas.
Do cargo de presidente do XI de Agosto saíram diversos políticos, homens e brancos, que viriam a assumir cargos importantes, como o ex-senador Aloysio Nunes Ferreira Filho (PSDB) e o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT). Na última quinta-feira (24/10), 116 anos depois da criação da entidade, os alunos da São Francisco elegeram sua primeira presidente mulher negra para essa posição, Letícia Chagas, de 19 anos.
Chagas nasceu em Campinas, no interior de São Paulo, filha de uma empregada doméstica e de um caminhoneiro aposentado, e considera sua vitória um marco da política da adoção de cotas sociais e raciais na USP, implementada pela primeira vez no vestibular para o ano de 2018. A linha de frente de sua chapa, a Travessia, é composta por pessoas que entraram na faculdade com o apoio das cotas. Seu grupo, próximo do Psol, derrotou o único grupo adversário, ligado ao PT e ao PCdoB, em uma disputa incomum no XI de Agosto, onde as eleições costumam contar também com o centro e a centro-direita representados.
“É a primeira vez que pessoas que realmente estão na periferia estão tomando o poder no XI de Agosto. […] Para nós, ajudar e estar na luta com pessoas socioeconomicamente vulneráveis não é uma questão de caridade, nós somos essas pessoas”, afirmou Chagas em entrevista à DW Brasil.
Seu posicionamento se reflete nas pautas que ela considera prioritárias para o país e para a universidade: mais cotas e mais apoio para que estudantes com dificuldades econômicas consigam se manter durante o período na faculdade.
Crítica ao PT, ao escolher uma área na qual o governo petista teria errado, ela menciona a falta de ações para reduzir o encarceramento em massa de pobres e negros. Indagada sobre a economia do país, diz ser contra a reforma da Previdência e afirma ser necessário enfrentar a concentração de renda.
Marielle Franco, assassinada em março de 2018, é sua maior referência política. “Senti medo quando vi o que aconteceu com ela, mas também vi que não estava sozinha naquele momento”, diz. Indagada sobre que marca deseja deixar, afirma: “Que pessoas negras são capazes de ocupar esses espaços [de poder] e, mais do que capazes, estarmos nesses espaços oferece novas perspectivas necessárias.” Leia abaixo a entrevista.
DW Brasil: Qual é a sua história?
Letícia Chagas: Sou de Campinas e sempre estudei em escola pública. Embora meus pais sejam humildes, tenho uma irmã que estudou pedagogia na Unicamp. Já pequena, sabia o que era universidade pública e meu sonho era estudar numa. No terceiro ano do Ensino Médio, fiz cursinho online e me inscrevi para história na Unicamp, um desejo antigo, e direito na USP. Quando vi que passei na São Francisco foi bem difícil, pois não tinha como pagar moradia em São Paulo. Mas, ao mesmo tempo, era o Largo São Francisco, não sabia até que ponto poderia abrir mão. Um dia antes de me matricular na Unicamp saiu o resultado para morar na Casa do Estudante [espaço de moradia gratuita mantido por verbas do próprio XI de Agosto], e decidi ir para ao Largo São Francisco.
Por que você prestou direito?
Sempre fui ligada a movimentos sociais, e na escola participei de grêmio estudantil. Pensava que, com o direito, teria os instrumentos institucionais para lutar pelo que acredito. Todas as profissões são importantes, mas o direito me dá conhecimento sobre as vias institucionais, tanto as que mantêm as coisas como elas são como as que possibilitem que a gente faça mudanças.
Desde quando você se envolve com política?
No nono ano do ensino fundamental eu estava passando pela transição capilar — antes eu alisava o cabelo. Já tinha tentado antes, sem sucesso, e o que me permitiu terminar a transição foi me aproximar do movimento negro, entender que aquilo seria importante para além da estética. E teve as eleições presidenciais também, a reeleição da Dilma [Rousseff], quando conheci o PSOL por meio da Luciana Genro. No ensino médio fiz escola técnica e tinha um grêmio estudantil bem consolidado, no primeiro ano já disputei uma eleição. No terceiro ano houve as ocupações das escolas em São Paulo, fizemos protestos em apoio às ocupações e contra a reforma do ensino médio.
O que levou à vitória de sua chapa e qual foi o significado dessa eleição para você?
Um dos fatores é que nossa chapa é a primeira a ter cotistas na linha de frente do XI de Agosto. As duas chapas [disputando] eram de esquerda, mas na nossa ser de esquerda é muito mais do que uma crença: a gente precisa disso para sobreviver na universidade, a questão da permanência [estudantil]. É a primeira vez que pessoas que realmente estão na periferia estão tomando o poder no XI de Agosto, fizemos muito esse debate. Outro ponto importante foi a questão financeira do XI, que hoje acumula diversas dívidas, inclusive trabalhistas. Mostramos que é importante ter uma gestão que lide com isso com mais responsabilidade.
Qual foi o impacto da adoção de cotas na política acadêmica?
Foi questionar temas que não eram questionados antes, ou eram muito pouco. Por exemplo, quase não temos autores negros nas bibliografias, e só há uma professora negra na São Francisco. Também trouxe à tona que a São Francisco tem um caráter assistencialista grande em relação a pessoas pobres. Há alunos que querem fazer caridade, e olham o pobre como o outro, como os salvadores desse outro. Mas, para nós, ajudar e estar na luta com pessoas socioeconomicamente vulneráveis não é uma questão de caridade, nós somos essas pessoas, nossos pais são as pessoas que poderiam ser atendidas pelo DJ [Departamento Jurídico, serviço de auxílio jurídico gratuito do XI de Agosto oferecido a pessoas pobres].
Que marca você pretende deixar no XI de Agosto?
Que colocar pessoas negras em posições de poder não é mera representatividade, algo que ouvi muito nos últimos tempos. Que as pessoas negras são capazes de ocupar esses espaços e, mais do que capazes, estarmos nesses espaços oferece novas perspectivas necessárias.
A vitória de Jair Bolsonaro teve algum impacto na política na faculdade?
Acho que sim. A chapa que ganhou no ano passado, pela terceira vez seguida, era ligada ao PT. Bolsonaro tinha ganhado as eleições nacionais, e na São Francisco ganhou o PT, o que dava uma sensação de que estávamos indo na contramão da política nacional. Mas, neste ano, começou outro movimento de questionar qual política a gente quer. Embora o Haddad fosse a melhor opção no segundo turno, a política do PT também precisa passar por autocrítica. Diante de um presidente tão autoritário como o Bolsonaro, a gente pode construir uma nova alternativa. Somos de esquerda, mas não queremos ser a velha política.
Quando você fala em velha política, o que você quer dizer?
Seria o governo do PT. O PT foi muito importante para o Brasil por muitos anos, tiveram vários acertos, mas as classes populares também podem criar uma alternativa. Há varios problemas nas críticas feitas ao PT, mas algumas são fundadas. Por exemplo, encarceramento em massa, isso impacta a vida de pessoas negras na periferia e não foi bem debatida no governo do PT
Que outros itens você colocaria como merecedores de autocrítica do PT?
A política de universidades. O Prouni [programa federal que oferece bolsas de estudo em faculdades particulares] é importante, mas seria mais importante aumentar as vagas em universidades públicas. O que aconteceu é que as faculdades particulares se tornaram cada vez mais fortes. E a inserção de pessoas pobres e negras na universidade é justamente o que legitima a universidade pública.
Que medida seria prioritária para a USP agora?
[Aumentar] a bolsa auxílio, que hoje está em 400 reais, um valor muito baixo. A situação na São Francisco é um pouco mais fácil porque há iniciativas de ex-alunos que oferecem bolsas para alguns estudantes, eu recebo uma delas, o “Adote um aluno”. Mas na maioria dos cursos da USP isso não acontece.
Que reformas o Brasil precisaria fazer para melhorar a situação da população?
São tantas coisas. Seria necessário aumentar a política de cotas. Hoje a universidade pública está sendo muito atacada e um dos argumentos é que há mais pessoas ricas nas universidades do que pobres, e isso faria com que a universidade não devesse ser financiada pelo poder público. Sou completamente contra a cobrança de mensalidades. O que legitimaria a universidade pública é fazer com que mais pessoas pobres e negras estejam lá. Precisamos também pensar a política carcerária e questões como a prisão após decisão em segunda instância. É algo que vai muito além do Lula, a juventude negra e pobre sofre muito com o encarceramento em massa.
O que você acha da aprovação da reforma da Previdência, prioridade do primeiro ano do atual governo?
Sou contra a reforma, ela vai contra boa parte dos eleitores do Bolsonaro. Vejo que a população não sabe o que está acontecendo, tanto em relação à reforma da Previdência quanto ao governo Bolsonaro. O que tinha era um desejo de mudança, mas não se sabia exatamente o quê. O desejo de mudança é legítimo, mas como se fazer essa mudança?
Em relação à economia, teria alguma medida que você proporia?
Historicamente, o principal problema vem sendo a questão da concentração de renda no Brasil. A solução não virá de respostas fáceis e pensar em possíveis mudanças para isso é um dos principais desafios para a juventude hoje.
Qual é o político que você mais admira?
A minha grande admiração é a Marielle [Franco], ela mudou a forma como a gente encara a política. Senti medo quando vi o que aconteceu com ela, um medo bem forte de participar da política, mas também vi que eu não estava sozinha naquele momento. Vi que tinham várias mulheres negras pensando junto com ela, é a minha principal inspiração.
O que você acha de Tabata Amaral [deputada federal pelo PDT-SP], que também é jovem, mulher e de origem humilde e está em evidência hoje na Câmara?
Li bastante sobre ela nos últimos tempos, acho importante ter pessoas novas que se propõem a fazer debates novos, mas às vezes acho problemático como se apresentam essas novas alternativas. A Tabata tem que ser levada com seriedade, mas a política e a temática dela hoje não me representam.
Fonte: DW