EM 1993, Jô Soares entrevistou Bertrand Maria José Pio Januário Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Orléans e Bragança, mais conhecido como “Dom” Bertrand, o príncipe imperial brasileiro que lidera um movimento que pretende reinstaurar a monarquia no país. O trineto de Dom Pedro II passou a entrevista enfileirando uma série de deturpações históricas: o Brasil não foi explorado por Portugal — “absolutamente não” —, monarquias africanas não são monarquias, não existe racismo no Brasil e a escravidão aqui foi muito menor do que em outros países. O príncipe também apelou para o fantasma do comunismo para justificar a ligação da família real com a Tradição, Família e Propriedade, a TFP, e o golpe de 1964. Bertrand também lançou mão de um delírio que hoje está na moda: “Não há nenhuma diferença essencial entre nazismo e comunismo”.
Mas o príncipe não encontrou uma plebe dócil no programa do SBT. “Você não acha que a monarquia é uma boa piada? Você não acha que é um anacronismo delicioso?”, debochou Jô enquanto a plateia ria da cara do príncipe. O achincalhamento foi grande. Bertrand chegou até a reclamar da “claque” contra ele. O príncipe foi tratado pela plateia e pelo apresentador como um personagem de humor, um Napoleão delirante da “Praça é Nossa”.
Como um súdito que sabe o seu lugar, Gentili abandonou o humor politicamente incorreto e passou o programa bajulando o príncipe. “É uma honra receber um nobre tão ilustre no nosso programa”, reverenciou como um bobo da corte. Assuntos como escravidão e as mamatas da Família Real passaram longe da entrevista chapa-branca. Nenhum dos fatos históricos deturpados pelo príncipe foi contestado. A plateia seguiu o apresentador na reverência a Sua Alteza. Os tempos mudaram. A monarquia hoje não já não parece uma ideia tão absurda como há pouco mais de duas décadas.
“O movimento monárquico está mais vivo do que nunca”, observou Dom Bertrand no programa de Gentili. E é verdade. Cento e trinta anos após a proclamação da República, o movimento nunca esteve tão forte no Brasil e hoje, como toda fauna extremista de direita, se encontra embutido no bolsonarismo. As ideias que foram ridicularizadas no programa do Jô há 24 anos, hoje estão no poder. A vitória de Bolsonaro é também uma vitória dos monarquistas.
Para Olavo de Carvalho, um dos mandachuvas do governo, Dom Bertrand é “o brasileiro mais patriota” que já viu na vida, “o sujeito que mais estudou os problemas do Brasil, que mais busca soluções”. Assim como Olavo e o atual ministro do Meio Ambiente, Bertrand é um antiambientalista que nega o inegável aquecimento global. Ele é autor do livro “Psicose Ambientalista – Os Bastidores do Ecoterrorismo para implantar uma Religião Ecológica Igualitária e Anticristã”. É também dirigente do Instituto Plínio Corrêa de Oliveira, uma associação ultracatólica criada para defender o legado e os valores da TFP. O site da entidade diz que sua missão é “mobilizar a sociedade civil e preservar a Civilização Cristã, ameaçada pela Revolução anticristã”. O príncipe também compartilha a homofobia do presidente da República: “Eu vejo o homossexualismo como um defeito”.
O conservadorismo elitista de Dom Bertrand é tão tacanho que até o casamento do príncipe inglês Harry o incomodou. Para ele, o fato da noiva ser uma“pebleia divorciada” é um sinal da “decadência da monarquia mais tradicional da Europa e do mundo”.
Uma reportagem da BBC revelou o avanço do movimento monarquista sobre o Congresso e o governo. Já se fala inclusive na existência de uma bancada monarquista. A deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) organizou recentemente uma visita de Dom Bertrand a Brasília. “Fiquei até surpreso, encontrei mais abertura do que esperava”, disse o líder monarquista depois de se reunir com o ministro Ernesto Araújo, o assessor internacional da presidência Filipe Martins — ambos frutos do olavismo — e parlamentares da bancada monarquista. O sobrinho de Dom Bertrand, o deputado bolsonarista Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP), não participou do encontro, apesar de ser monarquista e o primeiro representante da família real com mandato.
Líderes do movimento monarquista têm ganhado cargos no governo. O ex-ministro Ricardo Vélez, que também é monarquista, nomeou Gilberto Callado para o Inep, órgão responsável pelo Enem. Ele organiza eventos monarquistas em Santa Catarina e dedicou um livro em homenagem ao fundador da TFP, “Ao saudoso professor Plinio Corrêa de Oliveira, representante maior da inteligência contrarrevolucionária”. Callado considera que os professores e os alunos estão todos “corrompidos” pelo marxismo, pela “ideologia de gênero”e acredita que o STF é um “inimigo da instituição familiar”.
Carla Zambelli é a principal lobista da monarquia na Câmara. A deputada tem em seu gabinete um busto de Dom Pedro II e uma bandeira com o brasão do Império. Ela ganhou fama nas redes sociais ao liderar grupos que organizaram manifestações pelo impeachment de Dilma, como Revoltados Online e Vem Pra Rua. Foi nessa época que ela se aproximou dos militantes monarquistas, que também saíram às ruas para derrubar o governo petista.
No ano passado, a monarquista defendeu uma “intervenção militar no STF” e chamou o presidente da Câmara Rodrigo Maia de “bolinha que não significa nada”. Recentemente, ela foi condenada pela justiça por associar Jean Wyllys à pedofilia.Esse é o espírito democrático da deputada monarquista. Em pouco mais de quatro meses de mandato, Zambelli já está sendo acusada por colegas de partido por cometer crime de nepotismo cruzado.
“Quando as pessoas são eleitas, elas se preocupam muito com a próxima eleição. Um monarca não tem essa preocupação: ele só pensa no bem do país”, delirou Zambelli. Ela defende a instalação de uma monarquia parlamentarista, com a volta da família real ao trono e eleições para o parlamento.
Mas a bancada monarquista têm consciência de que este é um projeto a longo prazo. Acreditam que a ideia ainda é incipiente e com poucos adeptos. Segundo eles, antes é necessária uma campanha de conscientização da população para reverter a má imagem da monarquia propagada pelos republicanos nas últimas décadas. “Se o Bolsonaro colocou gente monarquista no governo, significa que ele não tem preconceito. Temos que presenteá-lo. Para instalarmos o parlamentarismo-monárquico, eu acho que a gente tem que se infiltrar em todos os partidos. É uma estratégia de guerra”, maquinou Zambelli.
As convergências dos ideais monarquistas com o ultraconservadorismo cristão dos gurus do bolsonarismo Olavo de Carvalho e Steve Bannon são enormes. As pautas casam perfeitamente: luta contra o casamento gay e a “ideologia de gênero”, o fim das demarcações de terras indígenas, a proibição ampla e irrestrita do aborto, a negação do aquecimento global e o combate permanente contra o comunismo. Eles enxergam o mundo a partir de uma visão religiosa e maniqueísta. Cristãos são o bem, enquanto esquerdistas são o mal a ser combatido em nome de Deus. Os valores iluministas da Revolução Francesa são considerados a grande tragédia da civilização ocidental que pariu o socialismo. A liberdade, a igualdade e a fraternidade são uma ameaça aos valores sagrados da família, da tradição e da propriedade.
A defesa da monarquia hoje no Brasil não é a defesa de um sistema de governo, mas de uma vertente ideológica e ultrarreligiosa de extrema-direita. É mais uma ideia estapafúrdia entre tantas outras vindas de anti-iluministas que desprezam a ciência e os avanços civilizatórios. A utopia monarquista é, sim, uma boa piada — ainda que nem um pouco inofensiva como era em 1993. É um Bolsonaro fantasiado de Napoleão.