O primeiro semestre de 2017 não terminou e três grandes tragédias no campo entraram para a história do país. No Mato Grosso, em abril, nove trabalhadores rurais foram mortos com requintes de crueldade. Em maio, um ataque contra os índios Gamela, no Maranhão, deixou duas vítimas com as mãos cortadas, cinco feridos por bala e outros quinze machucados. O terceiro caso também foi em maio, mas no Pará, foi uma violenta ação da polícia que terminou com dez trabalhadores sem-terra assassinados. “A polícia chegou atirando”, disseram testemunhas que conseguiram fugir.
Os três casos estão inseridos no contexto da disputa por terras, mas esse não é o único elo entre eles. A Repórter Brasil foi aos locais investigar os ataques e descobriu outro traço comum ainda mais alarmante: o tom premonitório. Em todos os casos, havia sinais de que a violência estava por acontecer. Em alguns deles, as vítimas pediram ajuda às autoridades antes dos crimes. Os sobreviventes continuam pedindo. No cemitério de Mato Grosso, onde cinco dos trabalhadores foram enterrados, o coveiro cavou covas extras para adiantar o serviço para a próxima chacina.
A crueldade dos ataques choca, mas não surpreende quem acompanha a escalada dos números sobre a violência no campo.
Para seguir esse cenário, lançamos o especial multimídia Campo em Guerra. Nele, investigamos as motivações dos ataques, o contexto em que as ilegalidades proliferam, as histórias por trás dos números e as ligações dessa violência com os setores produtivos que abastecem as grandes cidades do Brasil e do mundo. A série, ilustrada em linguagem HQ, combina ainda fotos, vídeos, áudios e infográficos com reportagens.
Assassinatos no campo
Mortes ocorreram de janeiro a maio de 2017
O ano de 2016 já entrara para a história recente como o que registrou o maior número de mortes por disputas no campo nos últimos 13 anos. Foram 61 vítimas fatais. A brutalidade dos conflitos na primeira metade desse ano anunciam que 2017 pode ser ainda pior. “Vemos no Brasil rural um acirramento do conflito que sempre esteve presente na história do país”, diz Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil.
Em maio, moradores atacaram índios Gamela, no Maranhão. Dois índios tiveram as mãos cortadas. Vinte ficaram feridos – cinco por bala
Quase um milhão de pessoas envolveram-se em mais de 1.500 conflitos por terra, pela água ou trabalhistas, segundo o relatório de Conflitos no Campo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de 2016. Recorde brasileiro desde 1985, o número é equivalente à quantidade de sírios em deslocamento interno em decorrência da guerra civil.
Parte da culpa pela escalada da violência está na ausência de ações por parte do estado. Ou pior: nas ações que fortalecem apenas um lado da disputa, os proprietários rurais.
Em dezembro de 2016, em plena escalada da violência, o governo Michel Temer extinguiu a Ouvidoria Agrária Nacional, única instância federal responsável pela mediação de conflitos no campo. Depois de protestos de movimentos sociais, o órgão foi recriado sob nova gestão. Em 2017, um projeto de lei foi apresentado pela bancada ruralista propondo pagamento de trabalhadores rurais com comida ou casa.
Enquanto a violência cresce também contra populações indígenas e tradicionais, medidas concretas são debatidas em Brasília para promover mudanças que fragilizam essas populações. Em janeiro, o Ministério da Justiça criou um grupo que dá poderes a representantes do governo de fora da Funai para declarar limites e desaprovar identificações de terras indígenas. Até então, o Ministério seguia o parecer técnico da Funai. Em março, o novo Ministro da Justiça Osmar Serraglio (PMDB-PR), ligado ao agronegócio, declarou “Terra enche a barriga de alguém?” em entrevista sobre a situação dos indígenas ao jornal Folha de S.Paulo. Serraglio deixou a pasta em maio.
Criada no final de 2016, a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Funai e o Incra apresentou relatório final em maio desse ano. O documento recomendou o indiciamento de mais de 90 pessoas, entre elas antropólogos, indígenas e até procuradores da República que atuaram em defesa dos direitos indígenas e de trabalhadores rurais.
O Brasil é campeão de assassinatos de ativistas e defensores do meio-ambiente no mundo, de acordo com a ONG Global Witness, que há mais de duas décadas estuda os vínculos entre a exploração de recursos naturais e conflitos, dentre outros. Entre 2002 e 2013, 448 defensores brasileiras morreram, mostrou relatório da Global. O levantamento da CPT mostra o mesmo cenário. O número de casos de violência contra a pessoa saltaram de 615 para 1079 entre 2007 e 2016. Os de criminalização cresceram 185%. “Institucionalizaram a luta por direitos como crime no Brasil, como se as pessoas que se manifestam fossem bandidos”, diz Cesar. “Se você tem um estado mais repressivo, você dá licença para a violência e legitima ações paramilitares”, diz.
A brutalidade em terras brasileiras alcançou a Organização das Nações Unidas (ONU) em maio de 2017. “Estamos preocupados com o aumento dos ataques no Brasil contra defensores de direitos humanos. O Estado precisa lidar com a impunidade”, disse Zeid Ra’ad Al Hussein, o alto comissário da ONU para Direitos Humanos. A declaração foi dada uma semana antes do Brasil ser desqualificado em Genebra por sua política social nos últimos anos. A estratégia da ONU foi a “naming and shaming”, que é basicamente envergonhar o país focando nas violações cometidas. No caso, pelos direitos indígenas, que sofrem a maior ofensiva desde a ditadura. Em junho, relatores da ONU e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos declararam que “os direitos dos povos indígenas e o direito ambiental estão sob ataque no Brasil”. A estratégia do governo brasileiro, já fragilizado internacionalmente, foi pior do que os analistas poderiam prever. O Ministério das Relações Exteriores, em nota, chamou de “infundadas” afirmações dos relatores.
“A situação é catastrófica”, diz Márcio Meira, ex-presidente da Funai. “O governo está fazendo barbaridades em direitos conquistados a duras penas desde 1988.” Na avaliação de Meira, os índios são sempre os primeiros a sentirem mudanças graves. “Isso significa que, depois, os desastres chegarão para outros grupos vulneráveis, como os trabalhadores rurais.”
Para Werneck, da Anistia Internacional, as soluções não são simples, mas elas existem. Ela cita a Constituição de 1988, que estabeleceu um prazo para a demarcação das terras indígenas. “Veja quanto tempo se passou sem que este compromisso da sociedade brasileira e ainda esta obrigação estatal saísse do papel. O processo de demarcação de terras é lento demais e ainda se arrasta com inesgotáveis recursos jurídicos”, diz.
Combater a impunidade nos conflitos no campo também é prioritário para que vidas não sejam ceifadas. De acordo com dados da Anistia Internacional, um levantamento feito no Pará mostrou que trinta dos quarenta municípios do sul e sudeste do estado têm taxa de 100% de impunidade em relação aos assassinatos de trabalhadores rurais nos últimos 43 anos. “É preciso romper com as ameaças e inseguranças, acabar com a impunidade para crimes relacionados à disputa por terra e recursos naturais e avançar nos processos de demarcações e titulação”.
Diante desse cenário, a equipe da Repórter Brasil lança o especial multimídia Campo em Guerra. A série, ilustrada em linguagem HQ, combina ainda fotos, vídeos, áudios e infográficos com reportagens de fôlego sobre a guerra que se instaurou no campo brasileiro. Investigamos as motivações dos ataques, o contexto em que as ilegalidades proliferam e as ligações dessa violência com os setores produtivos que abastecem as grandes cidades do Brasil e do mundo. :: ?
Se você conhece uma história que precisa ser contada neste especial, escreva para a Repórter Brasil pelo contato@reporterbrasil.org.br e coloque “conflitos” no assunto do e-mail.?
Por: Thais Lazzeri
Ilustrações: Samuel Buono
Infográficos: Eugênia Pessoa e João Diaz
Fonte: Repórter Brasil