Ganhar ou perder eleições, vitórias apertadas, derrotas humilhantes — tudo isso faz parte da política. Mas, diante das urnas totalizadas, a melhor reação não é remoer rancores, mas entender o que as pessoas tentaram dizer com seu voto. Em primeiro lugar, o recado dos que não foram às urnas, votaram em branco ou anularam. Em número, superaram os votos do candidato eleito em primeiro turno em São Paulo. No Rio, foram mais numerosos que a soma dos votos dos dois Marcelos que chegaram ao segundo turno.
No mesmo domingo em que houve eleições municipais no Brasil, colombianos e húngaros foram às urnas, também com um alto nível de abstenção. Isso acontece em muitos países, mas em cada um tem suas razões. No caso brasileiro, a julgar pelo que ouvi nas ruas, e olha que rodei muito para um não candidato, muitos se sentem não representados, outros temem que seu voto acabe fortalecendo a roubalheira de sempre. A agonia do sistema político brasileiro ficou evidente, e já é mais do que hora de alguma mudança, para não chegarmos ao nível do plebiscito húngaro: somente 39% dos eleitores votaram.
As eleições mostraram uma rejeição nacional ao PT, com maior intensidade em São Paulo. Não adianta se consolar com o fato de que o sistema político também foi rejeitado. Na contagem de votos, ficou claro que alguns foram rejeitados, outros, escolhidos. É simples assim. Mas a tendência a negar tudo, esse complexo de marido infiel de Nelson Rodrigues, vai persegui-los por algum tempo. Cada um com suas ilusões. Na semana passada, escrevi sobre as ilusões perdidas no processo político. Por coincidência, encontrei um texto sobre ilusão, comparando o budismo e o taoismo. Segundo o autor, o budismo procura nos despertar do sonho. O taoismo nos desperta para o sonho. O pensador taoista Chuang–Tzu afirma que despertar para a verdade de que a vida é um sonho não significa afastar-se dela, mas acolhê-la de uma forma mais sábia. O místico chinês achava que não podemos nos livrar das ilusões, apenas tentar sempre despertar para um sonho mais lúcido.
A eleição de São Paulo consagrou um candidato com um perfil mais próximo do empresário que do político profissional. Além da corrupção, que é o grande tema, existe no ar uma demanda por eficácia. Os empresários experimentados na gestão são uma espécie de alternativa que surge espontaneamente nos sistemas políticos em crise. São, na aparência, distintos dos políticos e, além do mais, podem financiar suas campanhas com recursos próprios. No entanto, o processo é muito mais complexo que a simples gestão. É inegável que ela é um fundamento essencial de um governo. Mas outras habilidades — como harmonizar interesses conflitantes e projetar o futuro de uma complexa metrópole — também têm seu peso e podem cobrar caro pela sua ausência.
No caso da derrocada do PMDB no Rio, não creio que o tema gestão tenha sido decisivo, mas vejo uma importância maior na escolha do candidato. A tendência dos governantes é escolher alguém pelo seu nível de fidelidade. Lula arruinou a possibilidade de um processo político no PT escolhendo Dilma. A ideia de impor sua própria escolha ao eleitorado acaba empobrecendo a própria disputa eleitoral. Ainda mais porque, às vezes, nos arvoramos em interpretar a opinião dos eleitores e achar que ela é volúvel e pode ser domesticada pela propaganda. Nesse sentido, o processo americano de eleições primárias soa muito mais adequado. Os candidatos passam por duras provas, submetem-se a debates, e só depois de conquistar suas próprias bases partem para o confronto maior. As escolhas do PT e de Paes ganharam um nome nascido no partido dominante no México: a dedada, como instrumento de escolha.
No entanto, os norte-americanos têm uma fórmula que permite, pelo menos parcialmente, estabelecer um vínculo entre os candidatos e os eleitores. Potencialmente, é algo que melhora a qualidade política. Como explicar Trump, então? Ele passou por todos os testes, explorou a imagem de empresário e se aproveitou do desgaste dos políticos. Alguns dos melhores republicanos reconhecem a limitação de Trump. Assim como alguns tucanos em São Paulo têm reservas em relação a João Doria.
Mas esse é o recado. Sistemas políticos envelhecidos, que não conseguem produzir sua renovação, acabam sendo superados por algo que vem de fora, inicialmente pessoas bem-sucedidas, com capacidade de financiar suas campanhas. Não há milionários nem astros de TV para assumir todos os governos. Não é uma solução para um problema mais amplo. Dissociado de um projeto coletivo, do permanente choque de ideias, o sistema político em agonia foi às urnas e perdeu as eleições. Sem desculpa para a derrota do PT, que muito contribuiu para aviltá-lo.
Já que, segundo Chuang-Tzu, escolhemos apenas as ilusões das quais não podemos nos livrar, arrisco dizer que domingo foi o prenúncio de uma reforma política. Mas, como Chuang-Tzu, não sei se sou homem sonhando ser uma borboleta ou uma borboleta sonhando ser um cronista do GLOBO.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 09/10/2015