Com a posse de Trump, começa uma nova fase no mundo, na medida em que ele é influenciado pela mudança de presidentes nos EUA. Até aqui a maioria dos analistas manteve uma postura de estudo e atenção. Os governos estão de orelha em pé. Até que ponto Trump presidente e Trump candidato são a mesma pessoa? Independentemente dos impulsos pessoais, as salvaguardas da democracia americana limitam seu poder.
No final de seu mandato, Obama conta com um aprendizado: ter conhecido os limites do possível, mesmo quando se ocupa um cargo dessa dimensão. São duas pessoas diferentes. Obama é um intelectual, com formação literária. Usava parte de suas noites para ler, era a forma de se distanciar do turbilhão das notícias, ganhar perspectiva. E, como ele próprio confessou, entrar no chinelo dos outros, viver outras vidas. Obama aprendeu sobre o ser humano com Shakespeare, que descreveu na cultura ocidental a integralidade do ser humano, com suas baixezas e loucuras, ridículos e algumas qualidades.
Trump é um empresário, e talvez seu arquétipo seja George Babbitt, o rechonchudo e próspero empresário, também um símbolo da cultura americana. Babbitt é um personagem de Sinclair Lewis, primeiro escritor americano a ganhar o Prêmio Nobel. Na casa de Babbitt, os filhos não iam estudar Belas Artes ou Literatura, mas se preparar para o mundo dos negócios. Trump tem experiência de televisão, maneja o Twitter, é um empresário de outra época. Apesar disso, tem oposição na indústria cultural.
Desde já, com boicotes à posse e críticas em Hollywood, o que posso deduzir é que a própria influência americana no mundo se fará com salvaguardas. De um lado, o desdobramento da política de Trump; de outro a crítica do universo cultural. As primeiras intervenções dos responsáveis pelo Pentágono e pela CIA já mostraram que eles divergem de Trump em dois temas essenciais da campanha: a relação com Putin e o muro na fronteira com o México. Para um deles, o status da Rússia permanece o mesmo no universo da vigilância americana. Para outro, o muro não é melhor saída para o problema dos clandestinos.
Apesar de todos os enigmas, Trump deve tentar satisfazer aos eleitores, abrindo empregos e buscando ressuscitar algumas indústrias em declínio. O caminho deverá ser o protecionismo. E o impacto regressivo na estrutura do comércio mundial pode ser ruim. E além disso, os resultados internos também são duvidosos. Finalmente, Trump candidato nega o aquecimento global e o atribui à invenção dos chineses. Imaginem, os chineses custaram a aderir aos primeiros acordos internacionais. Só uma mente simples pode atribuir uma influência dos chineses em milhares de cientistas do mundo que trabalham com o tema e apontaram sua gravidade antes da própria burocracia comunista.
No Twitter fala-se de tudo, em 140 caracteres. Num mundo de notícias falsas, da pós-verdade, versões suplantam as evidências. Isso não significa que a realidade não venha cobrar sua conta. Não importa tanto descrever Trump. É sua atuação como presidente que vai influenciar temas sensíveis para a Humanidade: a imigração, o comércio internacional, o aquecimento do planeta.
Aqui no Brasil será preciso muita cautela, uma vez que Trump tem se fixado mais no México. Na América do Sul, apenas Nicolás Maduro o saudou com entusiasmo. Temos, em menor escala, o problema dos imigrantes, vivemos um momento de desemprego e, desde a queda de Dilma, o país se direcionava para intensificar as relações com os Estados Unidos. A crise econômica, a corrupção, cabeças cortadas, a violência urbana, tudo isso serve para projetar uma imagem negativa. Será preciso concentrar-se nesses problemas, e ter cabeça fria na relação com Trump. No momento em que o mundo dá essa reviravolta, creio que vai se entender uma fase de economia de opiniões brasileiras sobre o seu destino. Todos sabem que estamos ocupados demais em sair da maré negativa de quase uma década, agora acrescida dos horrores nos presídios. A expectativa sobre o que Trump fará como presidente é enorme. Grandes emoções podem vir, mas o foco é aqui dentro. Não se pode dançar com leveza com tantos espinhos nos pés.
Não estou propondo um desligamento do mundo. Apenas lembrando que neste momento o exame do que se passa não foge de um tema inescapável: isso nos ajuda ou não a sair da crise? O comércio com os Estados Unidos pode ser um elemento dinâmico. O Brasil já faz esforços nesse sentido, desde as eleições. Mas com as constantes referências de Trump à taxação de produtos estrangeiros, até isso para mim é um enigma. Num mundo de enigmas, só tenho certeza de que aqui estamos num buraco, sonhando em escapar dele.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 22/01/2017