Na fronteira do Piauí com o Ceará, onde está o cânion do Rio Poti, as pedras são a grande atração. Suas formas nos desafiam, as composições derrotam nosso desejo de classificá-las. A exceção são as pedras que lembram bichos. Nesse caso ganham um nome: Pedra da Baleia, da Tartaruga. Na última viagem a Brasília, examinando a configuração que o governo tomou ao longo da crise, senti-me desafiado a descrevê-lo: que bicho é esse? Como muitas pedras no cânion do Rio Poti, não é nada parecido com imagens familiares.
Acuado pela pressão das ruas, o PT lançou mão de Joaquim Levy para tocar a economia e do PMDB para tocar a política. Na Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha reina, às vezes, com um enfoque autoritário. Proibiu que presos fossem à CPI, mas blindando o intermediário do PMDB, Fernando Baiano. Como o PMDB se dispõe a fazer avançar a agenda do capitalismo e suas metamorfoses e promete garantir a liberdade de imprensa, abriu um crédito, senão de simpatia, pelo menos de tolerância.
Outro dia, uma emissora de TV, extremamente crítica ao governo, ressaltava a habilidade de Temer em bloquear a CPI do BNDES. A locutora não queria entrar no mérito, apesar de destacar essa qualidade. Acontece que é impossível dissociar a habilidade do objetivo de sua ação: desvendar a atuação do banco é algo importante para o momento, e fundamental quando se escrever a história desses anos de governo petista.
Numa conferência, Fernando Henrique Cardoso afirmou que a sociedade não pode viver em guerra e que, em algum momento, haveria um acordo. Fernando Henrique está equivocado sobre a necessidade de seu partido manter distância do movimento das ruas. E está equivocado quando diz que impeachment é uma bomba atômica. O impeachment pedido pelas multidões não é uma bomba atômica. É uma batata quente nas mãos de um grupo que não gosta de combater, que sonha em cruzar as estradas enlameadas sem sujar o guarda-pó.
Se houver algum tipo de acordo, sem consulta às ruas, será apenas uma tentativa de esvaziar o movimento. E confirmar, como dizem tantos jornalistas próximos ao governo, que as multidões não têm foco e vão se dispersar.
Como fazer um acordo com Joaquim Levy sobre o ajuste fiscal? Ou com Temer sobre a paz política? Um influencia a economia, outro, a política, mas o PT continuará dominando a máquina.
Que sentido tem um esforço fiscal com a máquina dominada pelo PT? Eles não aceitam cortes nem admitem a corrupção em todos os níveis do governo. Vamos poupar para que a máquina continue sendo assaltada? Estamos falando com intermediários do PT, Levy e Temer.
Que tipo de horizonte político o PMDB pode garantir? Renan Calheiros e Eduardo Cunha estão sendo investigados pela PF. Mas não deixam o cargo enquanto o processo se desdobra. Uma demanda desse tipo pode ser quixotesca agora. Mas não no futuro, quando o país amadurecer. O máximo que o PMDB pode fazer é segurar uma das alças do caixão da Nova República. Isto é participar de uma fase de transição que leve a 2018.
A configuração que se criou em Brasília, com o PMDB ocupando espaços do PT e Joaquim Levy negociando o ajuste, libera Dilma para uma atuação simbólica, de rainha da Inglaterra. Enquanto Levy trabalha e o PMDB tranquiliza, o PT apenas hibernará. Se o ajuste econômico for um fracasso, será um fracasso da política dos adversários.
Nunca vi uma situação como essa, ou mesmo um partido tão rejeitado nas ruas. Ao perder a iniciativa na economia e na política, só lhe resta se apegar aos cargos no governo. E esperar um momento para levantar a cabeça. Este momento para mim é muito remoto. Milhões de brasileiros acompanham os escândalos. É uma ilusão pensar que esquecem. O ano que vem vai mostrar aos candidatos municipais do PT o tamanho da conta a pagar.
Não adianta construir um esconderijo perfeito. Pouco se avançará sem a punicão dos assaltantes da Petrobras e outras empresas do governo. E nada se avançará sem que os partidos assumam sua responsabilidade nos escândalos de corrupção.
Fernando Henrique tem razão: a sociedade não pode viver em guerra permanente. Mas também não pode ser vítima de um assalto permanente.
Esse é o grande nó a ser desatado. Alguns conhecidos de esquerda acham que a corrupção é secundária, angústia de pequenos burgueses. Outros me chamam de velho conservador e dizem que se viver mais dez anos vou defender a monarquia absolutista. Eles esperam que viva mais. Fico agradecido. Teremos tempo para cuidar de nossas divergências.
Mesmo porque agora o poder, de uma certa maneira, se deslocou. Vamos cuidar do PMDB, do ajuste fiscal e esperar que a esquerda oficial saia da toca. Muitos dos seus quadros não andam nas ruas, não sabem o que os espera.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 19/04/2014