As gravações vazadas ou divulgadas no Brasil são vistas, prioritariamente, sob a ótica da Operação Lava Jato. Até que ponto revelam uma trama para anular o trabalho policial, em que momento cruzam a linha do crime de obstrução da Justiça?
Como isso já foi discutido e, inclusive, levou à queda de dois ministros em apenas 20 dias, creio que é possível propor novas leituras das gravações, sobretudo a partir da experiência de muitos anos em Brasília.
Na vida cotidiana, a frase “sabe com que está falando?” já foi dissecada pelo antropólogo Roberto DaMatta e revela um aspecto autoritário da sociedade brasileira. Em Brasília, quando um problema depende de um juiz ou de um burocrata, os políticos fazem instintivamente outro tipo de pergunta: Quem fala com ele?
Essa pergunta é recorrente. Amigos, colegas de trabalho, familiares, todos são lembrados como uma possibilidade de influenciar.
Os políticos partem da correta presunção de que ninguém é um ser metafísico, completamente isolado da sociedade. E trabalham para convencê-lo pelos caminhos sentimentais do afeto e da gratidão.
Em alguns casos, a pergunta é mais ríspida e direta. Em vez do “quem fala com ele?”, surge o “quem o indicou para o cargo?”.
De todas as maneiras, é um processo permanente que envolve centenas de demandas, inclusive algumas pouco republicanas ou, francamente, fora da lei, como é o caso da obstrução de Justiça.
Num certo nível e com suas gradações, creio que é um processo comum a outros países. Essa incessante busca de um mensageiro adequado para seus pleitos é um dos atributos da política.
Juízes e autoridades sabem da existência desse processo. São treinados para conviver com ele e, dentro de suas possibilidades, resistir cordialmente.
A tarefa de neutralizar a Operação Lava Jato é talvez a mais complexa que alguns políticos brasileiros enfrentaram no caminho. Em certos momentos, houve uma ponta de desespero, como nas gravações de Lula nas quais ele pede que uma pessoa internada na UTI tire os tubos e fale ao telefone com a juíza Rosa Weber.
Possivelmente, não aconteceria nada de novo se o paciente em estado grave trocasse algumas palavras com a magistrada. Mas a simples expectativa mostra como é profunda a dependência da pergunta: Quem fala com quem?
No caso da Lava Jato, dois fatores complicaram o abundante fluxo das conversas que constituem o mecanismo cotidiano de Brasília.
O primeiro deles são as gravações feitas pelos investigadores. Elas foram realizadas para mostrar que os acusados tentavam escapar da Justiça e teciam suas tramas para evitar que caíssem nas mãos do juiz Sérgio Moro. Neste caso, entram as gravações que envolvem Lula e o governo Dilma.
Outro favor novo: as delações premiadas. Elas tornaram perigosas mesmo as ligações telefônicas entre amigos, as conversas que, teoricamente, estão fora do alcance da polícia. Neste conjunto estão as gravações realizadas por Sérgio Machado. As pessoas vão sendo capturadas na medida em que entram e falam no ambiente, como é o caso do ex-ministro da Transparência Fabiano Silveira.
Em ambos os casos, as gravações representam jatos de areia no mecanismo de poder de Brasília, antes tão fluido e vivenciado como natural.
A reação de Lula e de José Sarney, dois homens que experimentaram o poder e ainda o detêm hoje, em escala menor, é de insegurança. Como se o mundo virasse de pernas para o ar e o eixo do poder perene subitamente fosse alterado: uma revolução.
Lula revelou esse desgosto ao cunhar a expressão “República de Curitiba”. Sarney, nas gravações de Sérgio Machado, define o processo como uma “ditadura do Judiciário”.
Cada um reagiu à sua maneira. O PT, pelo confronto, que é a linguagem mais comum ao partido. Era preciso paralisar os adversários, denunciar a mídia golpista e toda essa história.
Ao que me parece, o PMDB compreendeu que o eixo do poder se deslocou e tratou de arrastá-lo de novo para sua posição original.
E recolocou, em outro nível, a pergunta tradicional: Quem fala com quem? Era preciso cativar os juízes do Supremo, seduzir os grandes órgãos da imprensa, só assim o poder se reinstalaria em Brasília e o País voltaria à normalidade. Tentativa também fracassada.
Um elemento interessante nessa luta permanente para recuperar o eixo do poder é a maneira como Lula, Sarney e o próprio Machado encaram o silêncio de alguns e o apoio popular à Lava Jato. Em vários momentos, usam a palavra covardia, lamentam que o avanço das forças de Curitiba não seja combatido por uma resistência nacional. Era como se os invasores fossem tomando o País e, ao invés de pedras e bomba, ganhassem aplausos e flores.
O velho Sarney sabe que nem tudo terminou e prevê um assalto final com a “metralhadora ponto 100”: a delação de Marcelo Odebrecht e dos executivos de sua empresa.
Quase nada ficará de pé. Neste momento, denunciar e punir talvez não tenham mais a urgência dos tempos que se encerram. Definidas as responsabilidades individuais, será possível explorar o campo do sistema político em que tudo aconteceu, e a fantástica reação humana diante de um mundo que desmorona.
Faltam ainda dezenas de gravações, depoimentos, acareações. Se o tempo permitir, voltarei a elas com uma curiosidade diferente. Não mais saber quem vai ou não ser preso.
O universo político brasileiro sofreu o impacto semelhante ao dos asteroides que destruíram os dinossauros. Mas como é diferente quando se trata da história humana. Os dinossauros não tiveram escolha, não buscaram o contato desesperado entre si, não delataram nem gravaram escondidos as conversas mais reservadas. Políticos são humanos. Muito humanos.
Artigo publicado no Estadão em 03/06/2015