Numa das conversas gravadas com Sérgio Machado, Sarney disse que a delação da Odebrecht seria uma verdadeira metralhadora ponto 100. Parece que o tema já foi negociado na semana passada. Daqui a pouco, ouviremos o tiroteio, junto com explosões menores, como as delações de Léo Pinheiro, da OAS, e do próprio filho de Sérgio Machado, que era operador financeiro em Londres.
Se as rajadas atingirem todos os grandes partidos, como se anuncia, ficaremos com a paisagem depois da batalha, mortos caídos na estrada e feridos se arrastando na poeira. Talvez seja por isso que alguns jornalistas estrangeiros nos perguntam: o sistema político brasileiro vai implodir? É uma pergunta difícil. O sistema político brasileiro precisa implodir. Mas ao mesmo tempo não pode implodir: estamos numa profunda crise econômica, e ele é essencial para a travessia.
Depois de tantas jabuticabas, teremos de experimentar mais uma: recolocar o gigante de pé com o esforço dos mortos e feridos. Desde a saída de Dilma, o problema é nítido: precisamos saber de tudo o que aconteceu e, prioritariamente, reconstruir os caminhos da economia. Como dizia Samuel Beckett: não se passa um dia sem que algo seja acrescido ao nosso saber, desde que suportemos as dores.
O governo Temer sabia de muita coisa quando Dilma partiu. Poderia ter evitado as primeiras crises. No entanto, não conseguiu. Dois ministros caíram em 20 dias. Para descrever o futuro imediato, Sarney usou a imagem de uma metralhadora. Como arma, a delação premiada, nem sempre é tiro e queda. Há uma espécie de delay entre um e outra.
O segredo do processo de reconstrução econômica é não só utilizar, no que for possível, os feridos de guerra, mas selecionar entre os mortos aqueles que, pela sua utilidade, merecem uma curta sobrevida. Reconheço que essas projeções são sinistras. A hipótese de recomeçar do zero é inviável em plena crise econômica. A volta do PT não resolve a equação. Se a metralhadora tiver alguma pontaria, as rajadas mais potentes vão varrer o partido que mais profundamente se ligou à Odebrecht.
Mesmo sem ilusões, uma renovação virá apenas em 2018. Até lá, há uma formidável tarefa a ser executada. Oficialmente, estamos com 11,2 milhões de desempregados. Essa urgência na economia acaba impondo um atraso na política. Não dá para parar e resolver a crise política de forma satisfatória. A emergência é o dado mais claro da conjuntura. Um grupo razoável de políticos brasileiros tem experiência e capacidade para dar os passos que se exigem de profissionais do ramo.
O governo tem demitido os ministros que o comprometem abertamente. Mas não soube nem pode se antecipar a alguns passos da Operação Lava-Jato. Isso significa que o governo viverá aos sobressaltos, o que dificulta sua tarefa econômica. Além disso, há uma forte oposição que não só quer a volta do PT, mas afirma que mais consumo é a saída para o buraco em que Dilma nos meteu. Em outras palavras, o caminho da reconstrução econômica é difícil porque os atores caem como fruta madura do pé. E precisam impor medidas de austeridade diante de uma oposição que, com uma perspectiva eleitoral, propõe o contrário. Deixei de repetir que essa é a situação mais complicada que vi. Não adianta se deter nessa constatação. Não importa o tamanho da crise, a tarefa é sempre esta: o que fazer para sair dela? As gravações de Sérgio Machado revelam o fracasso do PMDB em deter a Lava-Jato. As gravações envolvendo Lula mostram também como o PT tentou, mas não conseguiu neutralizá-la.
O apocalipse das novas delações premiadas talvez seja o último capítulo da novela. Quem sabe sua proximidade não abre no front da reconstrução uma espécie de protocolo para as novas quedas? É preciso avançar por causa e apesar da Operação Lava-Jato. A reconstrução econômica é um ato de solidariedade com milhões de pessoas que sofrem. O que sobrou dos políticos, com a ajuda da sociedade, compõe a força que pode conduzir a transição. A crise é muito profunda, os agentes são muito frágeis, mas — o que fazer? — é a realidade que temos. O barulho dos tiros, o fragor das quedas, tudo isso pode nos distrair. No entanto, o foco é a reconstrução. A Lava-Jato deveria ter mais celeridade no caso dos parlamentares envolvidos. Todo esse barulho e o Eduardo Cunha solto, comandando um grupo de investigados na Câmara. É um drama muito grande para se perder em enredos secundários.
Imagino que, no exterior, observadores distantes achem cômico esse cai cai pós-impeachment. Mas, agora que se conhece o rombo na economia e a degradação de nosso sistema político, por mais grotesco e absurdo que pareça o quadro, não há outro caminho exceto enfrentá-lo. Que os outros achem graça. Os que vivem aqui têm de procurar e achar a saída.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 05/06/2016