A Lava-Jato representa uma novidade no Brasil. Mas, às vezes, tem uma recaída, típica dos momentos anteriores. Considero insensato permitir que Adriana Ancelmo, mulher de Sérgio Cabral, cumpra prisão domiciliar. Não desconfio da honestidade do juiz. Prefiro supor que tenha caído, como todos nós caímos, na armadilha do meloso sentimentalismo que envolve nossa cultura.
Em primeiro lugar, quero dizer que concordo com a ideia das mães cumprirem prisão ao lado dos filhos. As cadeias foram feitas para homens, e a ONU reconheceu essa inadequação ao aprovar as Regras de Bangcoc. As regras são boas, vão no sentido do progresso e reconhecem a singularidade da mulher. No entanto, como quaisquer regras, não podem ser aplicadas cegamente. Não creio que sejam no Brasil, onde dois terços dos pedidos de prisão domiciliar foram negados pela Justiça. A primeira pergunta que todos colocaram, inclusive a ministra dos Direitos Humanos: “Por que Adriana Ancelmo, e não todas as outras, tem direito à prisão domiciliar?” Pelo menos, a intervenção do governo admite que pobres também são humanos e retira esse conceito do limbo em que foi jogado por militantes que consideram humano apenas quem compartilha de suas ideias.
No entanto, não é esse o meu ponto. A decisão de transferir Adriana Ancelmo para sua casa foi insensata por outras razões, que se relacionam também com o conceito de Humanidade. Adriana é um dos cérebros da quadrilha que assaltou o Rio. O dinheiro das propinas de Cabral passava por suas mãos. Ela acompanhava o marido nas viagens ao exterior, nas quais o casal organizava melhor a distribuição da fortuna pelos diferentes esconderijos.
Os promotores acham que Cabral desviou R$ 1 bilhão. Cerca de R$ 300 milhões foram encontrados e, inclusive, aliviaram o drama de aposentados que não recebiam havia meses. E os outros possíveis R$ 700 milhões… Onde estariam? Adriana Ancelmo certamente sabe e vai querer redistribui-los não só para os gastos imediatos, mas também para utilizá-los no futuro. Cadeias no Brasil duram pouco.
Essa é a questão ética que se coloca para o juiz Marcelo Bretas, e ele respondeu de forma equivocada: atender à mãe separada dos filhos ou às milhares de mães que teriam seus dramas amenizados se o dinheiro fosse encontrado? Verdade que ele tomou precauções. Adriana não pode usar telefone nem internet. Mas como a Justiça brasileira, que não consegue bloquear telefones nos presídios, vai fazê-lo num prédio do Leblon? De novo, as precauções: a Polícia Federal está autorizada a realizar vistorias periódicas, sem avisar. Nos presídios, o próprio Exército está fazendo esse trabalho, que, na verdade, é um trabalho de Sísifo: você apreende os celulares hoje, reaparecem novos aparelhos na semana seguinte.
Em sua casa, Adriana poderá receber parentes, sem as regras rígidas do presídio. A essa altura, os defensores de Bretas devem estar pensando: se nos presídios não se bloqueiam celulares, qual a vantagem de mantê-la presa? Se a família Cabral não respeita as regras do presídio, graças ao grande cúmplice Pezão, que diferença faz receber parentes no Leblon?
Desde o início da década tenho acentuado a simpatia que a Justiça do Rio tem por Sérgio Cabral. No TSE ameaçavam processar quem o questionasse. Os tentáculos parecem se estender ao STJ, onde amigos estão prontos para ajudá-lo.
As recentes prisões de quase todos os conselheiros do Tribunal de Contas do Estado dão apenas uma visão da metástase do processo de corrupção em todos os setores do estado fluminense.
A Lava-Jato caiu na armadilha. Achou um caminho para que um dos cérebros da quadrilha continuasse a trabalhar em paz, articulando a redistribuição do botim. Fez tudo isso para que ela cumprisse suas funções maternas, levasse de novo paz à casa desfeita. Mesmo essa boa intenção implícita nas Regras de Bangcoc torna-se ridícula quando analisada no caso de Adriana.
A decisão de Bretas e dos simpatizantes de Cabral no STJ levou o inferno ao Leblon. O quarteirão onde está o apartamento de Adriana vive em sobressalto. Manifestações, panelaços, gritos de protesto. O próprio restaurante em que Cabral comia, tão perto que os garçons poderiam servi-lo em casa, não é mais o mesmo. Carros buzinam a todo instante, e as vozes dos motoristas indignados penetram no salão. A experiência mostra que esses focos crônicos de protesto tendem a polarizar quando a conjuntura se agrava. Há um potencial de tragédia no ar.
Não é o caso de Bretas, mas, se Cabral tem amigos no STJ, é bom que saibam que ele pode delatar. É preciso gostar muito dele para ajudá-lo. E acreditar que a recíproca é tão verdadeira que, louco para reduzir a pena, Cabral não os entregue também.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 09/04/2017