Nas estradas, comendo poeira, não tenho mais o tempo dos analistas profissionais. No passado líamos romances e ensaios nos intervalos do trabalho cotidiano. Soterrado por gadgets eletrônicos, baterias, pilhas alcalinas, plugs P2 e XRL, é preciso tempo também para ler os manuais. Sou um mané de manuais.
Alegro-me com as descobertas, intrigo-me com a lógica e, às vezes, desespero-me com o tamanho das minúsculas letras. Os escritores de manuais têm futuro com a produção incessante de novos modelos, novas funções. Futuro bem mais promissor que o de um cronista de estrada perdido em temas que desafiam os manuais.
Há duas semanas, no Uruguai, concluí que, apesar das diferenças, havia algo semelhante ao que se passa no Brasil. Um interlocutor uruguaio me dizia: “O governo da esquerda é medíocre, mas a oposição não me entusiasma como alternativa”. As eleições, a julgar pelo momento, não devem alterar a balança do poder. Também em nosso país, de acordo com as pesquisas, muita gente que considera o governo medíocre não se entusiasma com a oposição como alternativa do poder.
O governo no Uruguai legalizou a maconha pelo caminho parlamentar. Evitou o plebiscito porque talvez saiba que a maioria é contra. No entanto, uma decisão tão polêmica não mudou em nada o favoritismo de Tabaré Vázquez, o candidato da esquerda.
Aqui, no Brasil, o resultado do júri do mensalão, e também a maneira como os condenados do PT reagiram ao serem presos, erguendo punhos de uma finada revolução bolchevique, deveriam desgastar o partido e o bloco no poder. No entanto, o prestígio de Dilma Rousseff cresce, enquanto a oposição patina. Nas corridas de cavalos tínhamos uma frase para definir o quadro, quando um dos competidores se destacava: de trás não vem ninguém.
Essa zona de conforto é comum aos dois governos. Mas há diferenças no próprio exemplo: o governo uruguaio enfrenta a maioria com uma decisão que acredita ser uma continuidade histórica. O país sempre esteve adiante em temas como casamento gay, prostituição, divórcio, aborto e, além disso, ainda no século 19, resolveu garantir educação obrigatória, gratuita e laica a todos os uruguaios.
São dois movimentos diferentes na mesma zona de conforto. A esquerda uruguaia desafia a maioria porque se crê dotada de uma tarefa histórica e dá um passo típico da vanguarda que aplica seu programa por achar, a despeito da opinião pública, que sabe o que é melhor para todos.
No Uruguai, o presidente José Mujica tem uma vida austera, anda de Fusca, recebe $ 1 mil de salário e daqui a pouco deixa o poder. Aqui a zona de conforto é mais pé na terra, mais sensual e materialista: ocupar a máquina do Estado em todas as suas engrenagens, justificar a corrupção a ponto de romantizá-la e usar o dinheiro público para financiar um grupo escolhido de empresários. Aqui há bolsa para ricos e pobres, o consumo é a nossa droga.
Não leio apenas manuais na estrada. Escolho sempre o corredor, com todo o respeito pelos simpáticos vizinhos. Esta semana viajei com Simon Critchley nas mãos. para reler seu interessante O Livro dos Filósofos Mortos. Para ele, negamos o fato da morte mergulhando nos prazeres do esquecimento, da acumulação de dinheiro e bens materiais ou, então, numa promessa de imortalidade oferecida pelas religiões antigas e as do estilo New Age. Ou se busca a transitória consolação de um esquecimento momentâneo ou a miraculosa redenção depois da vida.
É um enredo tão poderoso que coloniza a própria política onde florescem as incursões em busca do tesouro e aventureiros religiosos. A política tem que ver com o consumo digno e alguns objetivos coincidentes com a religião. Mas não se resume nisso.
Ao analisar a morte de muitos filósofos, Critchley disse que por meio desse roteiro mórbido tentava encontrar o sentido e a possibilidade da felicidade. A política, ao lado do amor e da amizade, é uma das respostas para esse enigma. É duro vê-la desaparecer do horizonte envolta numa nuvem de resignação e fanatismo religioso e saber que não existe resposta nos manuais.
O ano que entra, com Copa do Mundo e eleições, é um desses anos em que o “nunca fomos tão felizes” do discurso oficial é posto contra a parede.
A oposição reclama que o governo é o único que tem visibilidade na mídia. De fato, não só visibilidade, mas instrumentos de poder, helicópteros para voar, enfim, uma campanha perfeita: não se gasta nada com o máximo de repercussão. Mas há um aspecto que a oposição precisa compreender: a importância dos fatos. Se não surgem ações nem discursos em conexão com os fatos que interessam às pessoas, a imprensa não pode fazer nada.
Federalismo ou julgamento do mensalão? Em que planeta nós estamos? Nada contra o federalismo, mas é algo que preocupa governantes estaduais e está dentro da esfera política administrativa. O mensalão vivia nas conversas de rua, na rede.
É fundamental ter programas e fazer propostas para todos os setores num momento como este. Contudo um programa só ganha vida quando se conecta com o interesse das pessoas reais.
Assim não dá. Quem sabe no ano que vem?
Nunca me esquecerei de um homem da minha cidade conhecido como “Antônio me abraça”. Ele entrou numa casa de apostas que irradiava uma corrida de cavalos e disse sobre o tordilho que liderava a prova: “Só perde se quebrar a perna”. Pois quebrou.
Antônio dedicou os últimos anos de sua vida a obras de caridade e abandonou o ramo dos milagres. Não se pode contar com ele.
Se não houver uma disposição de se encontrar com a sociedade, a onda pode vir novamente em 2014, sem chance de inspirar a alternativa política. De tudo fica um pouco. Mas não precisa ser tão pouco.
Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo