Neste período de carnaval, sinto-me, às vezes, num planeta vizinho próximo o bastante para ouvir os blocos na rua, numa posição confortável para recordar. Quando menino, ouvi meu tio cantar: “Ai morena, seria o meu maior prazer/ passar um carnaval contigo/ beijar a tua boca/ e depois morrer”.
No final da marchinha, a morena seria mais rainha do que é, e o Rei Momo beijaria os seus pés. Aquilo soava como uma paixão incontrolável. Beijar a sua boca e depois morrer? Não era um preço muito alto? O Rei Momo beijava apenas os pés da morena. Queria preservar a vida, para outros carnavais? Talvez beijar a sua boca fosse, na época, a metáfora de ir para a cama. E o verso “depois morrer”, uma alusão ao orgasmo, esse desligar-se do mundo.
O carnaval é isso, mas não inteiramente. Nunca me saiu da lembrança uma cena no inverno europeu. Era uma festa de exilados, e, a certa altura, alguns fizeram um cordão e começaram a cantar “Mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar”, com dois dedos erguidos em cada mão. Nevava lá fora, e eles cantando no silêncio da noite de inverno. O carnaval para eles era, ao mesmo tempo, uma lembrança do Brasil e da própria infância. Creio que é o mesmo para mim, embora não tenha a mínima disposição de erguer dois dedos em cada mão e sair cantando por aí. Na verdade, se saísse, cantaria: “Tomara que chova três dias sem parar”. Mas, na verdade, cantaria apenas para mim.
Hoje estou sempre atento aos dados que me permitam transitar no Rio, driblando o desfile de blocos. Os foliões são muito simpáticos, mas se vertessem em água a mesma quantidade que vertem em xixi, seriam mais simpáticos ainda. Ouvi o relato de uma senhora que mora num prédio próximo ao ensaio de um bloco. Ela fica nervosa com barulho, xixi, enfim toda a movimentação diante de casa. Várias vezes pensou em ir para a janela e gritar. Mas nem isso pode fazer. O nome do bloco é desencorajador para sua empreitada: Calma, Calma, Sua Piranha.
Desde quando voltei ao jornalismo, o carnaval para mim é quase sempre trabalho. Nos últimos anos, tenho documentado o desfile carnavalesco dos internos do Pedro II e entrevistei Joãosinho Trinta quando proibiram sua imagem de Cristo Mendigo no desfile de carnaval. Pena que Joãosinho não tenha sobrevivido para ver os tempos do Papa Francisco, certamente muito mais abertos para o que, na época, foi tido como uma heresia.
Espero que no carnaval todos beijem muito, não percam tantos celulares, morram um pouco como na marchinha, mas não se esqueçam de sobreviver para o que nos espera. No auge desta crise de água e energia não viveremos apenas as cinzas do carnaval, mas também de um modelo de desenvolvimento que não dá mais pé. Sua falência visível nos ajuda a sair da ilusão da abundância e planejar a escassez. Será uma longa caminhada. A primeira etapa foi colocar Deus entre parênteses. A segundo é colocar o governo entre parênteses. Em outras palavras, as saídas dependem muito da própria sociedade, de sua capacidade de inventar.
Há 30 anos, num programa de televisão, apresentei a história de uma escola no Andaraí que deu como tarefa aos alunos reconstituir a história de um rio do bairro, praticamente morto. Ao longo de sua busca pelo rio, os meninos conseguiram reconstruir a memória do lugar, a partir de depoimentos dos mais velhos. E reconstituíram a vida cotidiana, muito mais rica e alegre com a presença do rio.
Com todo o valor que reconheço na ciência e na tecnologia, creio que é preciso que as pessoas voltem a gostar dos seus rios. Muitos, como os moradores de São Paulo e outras metrópoles, já nasceram sobre rios soterrados ou transformados em esgotos. Para alguns, a própria ideia de rio é associada a mau cheiro e águas imundas. O rio é alma de muitas cidades no Brasil. A maioria não se dá conta disso. Se a crise, pelo menos, conseguir despertá-la para a riqueza que corre em suas terras, terá cumprido um papel pedagógico.
Uma vez, apresentei um projeto criando um estado independente do Pantanal. Não era uma simples bravata. Havia base de apoio entre os pantaneiros, fiz várias visitas a Miranda, que seria a capital. Na ideia de autonomia, havia também embutida uma proposta de governo: o comitê de bacia. A ideia de governar por bacia era muito mais adequada para enfrentar a complexidade da região.
O Brasil terá de encontrar não só criatividade mas também novas formas de se organizar para encarar o problema. Assim como os carnavais, o clima mudou. Vivemos um período de catástrofes naturais, e todos trabalham pensando em administrar a escassez. É difícil despertar do sonho da abundância de recursos naturais. Ele alimenta o populismo, propostas mirabolantes, marqueteiros e mercadores de ilusões. Roubar muito e prometer o paraíso tem sido a fórmula da sobrevivência no poder. Só o PT teria recebido US$ 200 milhões, segundo um ex-diretor da Petrobras.
Estou seguro de que a realidade vai nos abrir o caminho de uma adequação nacional aos novos tempos. Mas poderíamos apanhar um pouco menos dela.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Jornal O Globo em 08/02/2015