Hoje é dia de votar. Participei, diretamente ou não, de todas as campanhas do período democrático. Nunca vi nada assim. Para começar, é a primeira eleição sem dinheiro legal das empresas. E num momento em que os indivíduos não parecem propensos a contribuir. A imprensa mostra que o número de doadores é três vezes menor do que o número de candidatos. Sem contar que há muitos mortos entre os doadores e mais de um terço deles, 90 mil, são beneficiários do Bolsa Família. Dinheiro mesmo não veio da sociedade. Muito possivelmente a parte mais pobre dela contribuiu com CPFs para dar um verniz de legalidade às doações eleitorais.
“Na rua, parece que somos transparentes. As pessoas olham como se não existíssemos.” A confissão é de um amigo que faz campanha. A indiferença é pesada para os que sonhavam em empolgar a cidade. Mas é também um alívio. A hostilidade seria bem pior. O traço central da campanha não é falta de grana, mas de credibilidade. Quase ninguém parece acreditar em alguma saída num sistema político que envelheceu e caducou.
No primeiro dia da semana eleitoral foi preso Palocci, um ex-ministro da Fazenda, homem importante do PT. Na sua conta, foram bloqueados R$ 30 milhões. Se olharmos para trás, para o início do processo democrático, veremos que todos os que prometiam combater a corrupção acabaram se afundando nela. Collor e Lula foram eleitos com essa bandeira. Ambos, de certa maneira, foram derrubados por aquilo que anunciavam combater.
Na medida em que as pessoas fogem das eleições, os bandidos mais se aproximam delas. A sucessão de mortes de vereadores e candidatos na Baixada Fluminense é um indício. Em quase todos os casos, milícia e tráfico de drogas estão envolvidos. Não se pode dizer que as pessoas foram mortas apenas por questões políticas. Muitas tinham algum tipo de relação com o crime organizado. A grosso modo, um policial definiu assim a sucessão de crimes: com raras exceções, não morreram porque eram políticos, mas sim porque eram bandidos.
Em Itumbiara, Goiás, o tiroteio durante uma carreata lembrou-me da morte de Kennedy, só que um pouco mais tosca e sem mistério. O assassino do candidato do PTB estacionou um carro na contramão da carreata e saiu atirando. Foi morto. A biografia política do candidato não autoriza suspeitar que tenha sido morto por suas ideias nem que o assassino seja um fanático religioso ou político. Na medida em que decaía, o processo político tornou-se cada vez mais permeável aos negócios escusos, aos grupos paramilitares, aos aventureiros que querem apenas enriquecer com governos.
Houve grandes eleições no Brasil. Já em 1982, pelo menos no Sudeste, ela consagrou políticos de dimensão nacional: Tancredo em Minas, Brizola no Rio e Montoro em São Paulo. Na de 86, havia grandes expectativas que acabaram canalizadas para a primeira eleição direta para presidente, em 1989. Com a queda de Collor, a rápida passagem de Itamar e os dois governos do PSDB, as esperanças se voltaram para a esquerda do espectro político, encarnada pelo PT. Todos conhecem o resultado, embora alguns militantes, ideologicamente, tentem ressaltar seus aspectos positivos. Os fatos são inequívocos: o governo virou uma quadrilha, organizada para saquear o país.
Quando me lembro do entusiasmo de algumas eleições passadas, sinto uma certa nostalgia do tempo em que havia esperança. Alguns acham que a esperança deveria voltar, como se fosse algo que pudéssemos fabricar a qualquer momento. Quem tem esperança nesse processo político merece respeito, mas está distante da realidade. Quantas vezes não ouviu essas promessas eleitorais? Quantas vezes não viu candidato dizendo que ele, sim, pode resolver os problemas da cidade?
O desgaste do processo político é um fenômeno de alcance mundial. Mas cada país o vive de acordo com sua trajetória histórica. Estamos sustentando um sistema apodrecido. Não é exato dizer que as pessoas que se afastam dele sejam alienadas. Se entendemos alienação como distância da realidade, é o sistema que se alienou, encastelando-se no próprio atraso, enquanto a sociedade avançava na aspereza cotidiana.
Quando examinamos simulações de segundo turno em alguns lugares, as coisas ficam muito claras. O índice de voto nulo é impressionante. Nem um nem outro. Esse nem um nem outro é uma espécie de mantra que ronda o sistema político brasileiro. Quase ninguém se sente representado.
Os movimentos moralizadores no Brasil, desde o tenentismo e algumas variáveis de esquerda, deram com os burros n’água. É uma ilusão, creio eu, pensar que apenas a entrada de pessoas honestas vai purificar o sistema. Desde Shakespeare, as pessoas são essencialmente as mesmas, com suas grandezas e misérias.
Transparência, mecanismos de controle, redução de partidos, fim de foro privilegiado, mudanças no sistema — tudo isso aponta para um caminho promissor de mudanças. No mundo de hoje, é quase impossível salvar a política da mediocridade. Salvá-la do banditismo, entretanto, ainda é uma tarefa possível e necessária.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 02/10/2015