Semana de trabalho na Baixada Fluminense. Tardes quentes e muitas carreatas de candidatos atravancando o caminho, sobretudo no feriado de Sete de Setembro. Não posso fugir de um tema ao falar com as pessoas por aqui. A semana foi marcada por um escândalo nos fundos de pensão. O rombo nas contas de quatro deles, Petros, Previ, Postalis e Funcef, somam mais de R$ 50 bilhões. Como foi possível chegar a essas cifras? Onde estavam todos os mecanismos de controle? Que magia permitiu que uma suspeita que data de mais de 13 anos continuasse nas sombras?
Nos últimos meses, estourou também o escândalo do crédito consignado para funcionários públicos. As mesmas forças que combatem uma reforma da previdência usaram amplamente os recursos dos aposentados para seus projetos políticos. Norberto Bobbio, em seu livro sobre o que é a esquerda, destacava a preocupação com aposentadoria digna, uma proteção na velhice como uma linha divisória. No entanto, acho que hoje há consenso sobre a necessidade do sistema em muitos países. O que se discute, aqui, na França, na Grécia, é sua sustentabilidade. Experimentei no contato com um amigo na Baixada o que é a insegurança quando o sistema entra em pane. Ele é aposentado pela PM, o pai pelo Corpo de Bombeiros e a mãe como professora. São três funcionários estaduais e viveram momentos de pânico pela falta de dinheiro. O pai sofre de Alzheimer, precisa de uma enfermeira. Sem salário, os três não conseguiam mais pagar a enfermeira por sua vez estressada com o perigo de desemprego. É tão sério manter a sustentabilidade e o circo da campanha eleitoral, que com suas bandeiras e carretas parece alheia à realidade cotidiana.
Numa das noites, vi na TV dezenas de funcionários reclamando dos salários. Deveriam recebê-los, por ordem da Justiça, no terceiro dia do mês. Não havia dinheiro para todos. O governo optou por uma escolha de Sofia estatística: 30% ficariam sem o salário. Naquela imagens da TV, os 30% ganhavam rosto e voz, eram pessoas reais com dificuldades comoventes na sua vida cotidiana. O populismo vai garantir sempre que luta pelos “nossos velhinhos”, mas os últimos acontecimentos mostraram: os “nossos velhinhos” é que impulsionam com seu sacrifício os sonhos de poder e riqueza de setores da política. Na propaganda política parece que nada se passou, que não houve as grandes manifestações de 2013. Os candidatos estão sempre prometendo que vão cuidar de você, dos velhos, das crianças, dos transeuntes.
No torpor de quem trabalhou todo o dia, imagina-os como se fossem médicos correndo de enfermaria em enfermaria, cuidando de todos exaustos. É um discurso anacrônico. As manifestações de 2013 pediam serviços públicos decentes, em troca dos pesados impostos que se pagam. Parece pouco, mas é o desafio do momento. Não creio que as pessoas precisem de um pai.
Sobretudo agora que o pai dos pobres e a mãe do PAC acabam de deixar o poder. Acredito que muitos dispensariam pai e mãe no poder se tivessem apenas um bom funcionário público no governo. Mas a força de elementos irracionais, uma visão equivocada do papel do estado, ainda levam muitos à busca de um candidato populista que procura associar à imagem paterna. Fiquei muito impressionado com esses dias na Baixada. Ao cruzar com as campanhas políticas e sua bandeiras, foi como se o tempo não tivesse passado e todos esses últimos anos fossem apenas uma lembrança nebulosa.
De uma certa forma, era uma invasão de zumbis. Não ameaçam a vida mas a própria noção do tempo. Não sei se inflacionei minhas expectativas, mas em quase toda parte vejo campanhas políticas desoladoras. Em alguns lugares, você deixou de ser aquele eleitor que escolhe um candidato e se transformou num especialista em redução de danos, escolhendo a dedo o desastre menos assustador. Aquele processo que construímos a partir da democratização acabou. Sobrevive como um fósforo apagado.
Não é preciso ter lembranças para se chegar a essa conclusão. A frieza das ruas mostra que grande parte das pessoas prefere uma distância sanitária das investidas eleitorais. Infelizmente a marcha dos zumbis é tão sofisticada que os próprios doadores também já morreram. Dados do Tribunal Superior Eleitoral registram um grande número de mortos entre os doadores de campanha.
O processo só ficará completo quando produzirem uma grande quantidade de títulos de eleitores dos mortos. O ciclo se fechará. Os mortos dão a grana, votam, os zumbis acenam bandeiras e nos entopem de santinhos. Não creio que isso vá durar muito tempo. Prefiro acreditar que é uma dessas séries de TV que custam a acabar e estou vendo apenas um dos seus últimos capítulos. Vi uma manifestação de rua questionando os gastos do governo. O cartaz dizia: Seropédica acordou. O verbo é bem escolhido. Imaginei milhares de luzes se acendendo no mapa do Brasil e antevi uma reforma política. De baixo para cima
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 11/09/2016