Eis a minha arma!”, respondeu, serena, a missionária Dorothy Stang, mostrando a Bíblia, ao ser indagada pelo pistoleiro Rayfran das Neves Sales se estava armada. De olho na recompensa de R$ 50 mil, Rayfran sacou da pistola e efetuou seis disparos. Eram 7h30 da manhã do dia 12 de fevereiro de 2005. Norte-americana naturalizada brasileira, a religiosa despertou a ira de fazendeiros ao defender o uso sustentável da terra no município de Anapu, a 374 quilômetros de Belém, no Pará.
Passados 13 anos, três dos cinco envolvidos estão fora da prisão. Apenas os pistoleiros Rayfran e Clodoaldo Batista cumprem pena: o primeiro pelo assassinato de um casal em Tomé-Açu (PA) em 2014, e o segundo em regime semi-aberto. “A lei do mais forte impera em lugares onde o Estado não está presente. E, quando a luta é de trabalhadores rurais versus fazendeiros, é fácil saber quem é o mais forte”, afirma o procurador Felício Pontes Jr, do Ministério Público Federal.
O senhor foi a última pessoa a conversar com a Dorothy Stang, no dia anterior ao de sua morte. O que sentiu quando soube que ela tinha sido assassinada? É verdade que, até hoje, se culpa pelo que aconteceu?
Todos os que convivíamos quase que diariamente com a Irmã Dorothy nos sentimos culpados. Eu, particularmente, porque deveria ter insistido mais para ela não fosse à reunião do dia 12 de fevereiro de 2005. O lugar situava-se a 40 quilômetros da Rodovia Transamazônica, em um travessão quase que intransitável. A viagem até lá demorava o dia inteiro. Sabia do perigo que ela corria. Naquela última conversa por telefone, no início da manhã, minutos antes da viagem, ela me disse para não me preocupar. Seria acompanhada pelo delegado da Polícia Civil e alguns integrantes do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Anapu (PA). Os sindicalistas foram, mas o delegado não cumpriu a promessa. E ela foi assim mesmo.
Sobre o que mais vocês conversaram?
Dias antes, o fazendeiro mandante do crime havia colocado fogo na plantação dos agricultores. Dorothy disse que o “nosso povo” (como ela chamava os trabalhadores rurais sem-terra) estava assustado e precisava de apoio. O que mais me intrigou naquela conversa foi que ela afirmou várias vezes para eu não desistir da luta. Disse que seria difícil, mas que venceríamos. Ela estava se despedindo, hoje sei.
Vocês chegaram a solicitar escolta policial?
Quando eu falava que solicitaria segurança, ela recusava. “A segurança deveria ser para todo o nosso povo”, dizia. E completava que não tinha filhos nem netos. Se tivesse que acontecer uma morte, que fosse ela a vítima. Aqui ela se enganou. No dia de seu enterro, vi homens e mulheres com a mesma idade dela (73 anos), jovens e crianças, que choravam como se tivessem perdido a mãe.
Qual o maior legado deixado por Irmã Dorothy?
Em uma de suas famosas cartas, ela declarou: “Não vou fugir, nem abandonar a luta desses agricultores, que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor, numa terra onde possam viver e produzir com dignidade, sem devastar”. O assentamento foi batizado com o sugestivo nome de Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança, e se desenvolveu a passos largos. Irmã Dorothy levou sementes de cacau (nativo da região) e promoveu o consórcio com outras espécies: açaí, castanha, banana… Para resumir, ajudou a região a se tornar uma das maiores produtoras de cacau do Brasil. A floresta ocupou o lugar do pasto. A melhoria econômica foi tão rápida, que até hoje não foi vista em nenhum outro assentamento na Amazônia.
Em 2018, a morte de Chico Mendes completa 30 anos e a de Dorothy Stang, 13. Nos últimos anos, a violência no campo aumentou ou diminuiu? Por quê?
Nestes 30 anos, o Brasil oscilou. Houve períodos de diminuição e de aumento de violência no campo. Porém, o ano de 2017 foi recordista em ocorrências de conflitos no Brasil desde [a época de] Chico Mendes, segundo o dado mais confiável que temos, que é da Comissão Pastoral da Terra (CPT), uma ONG ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Para saber o porquê do aumento da violência no campo, tenho como pistas a crise política e o avanço das forças do agronegócio no governo federal.
E a maior parte desses crimes se deu na Amazônia, onde se trava uma luta entre dois modelos de desenvolvimento. O primeiro, chamo de modelo de desenvolvimento predatório. Ele possui cinco atividades básicas: madeira, pecuária, mineração, monocultura e energia hidráulica. E criou consequências desastrosas. Quase 20% da Amazônia foi destruída nesses últimos 40 anos, sem que isso significasse melhoria de vida aos amazônidas.
Em oposição a esse modelo está o socioambiental. Ele parte de um princípio básico: articulação entre a biodiversidade e a sociodiversidade. Dito de outro modo, ele concilia desenvolvimento com preservação ambiental. É concebido e voltado para os povos da floresta que possuem centenas de anos em conhecimento na forma de lidar com os recursos florestais sem o impacto suicida. Suas principais atividades são o extrativismo e a agricultura. São produtos cada vez mais fortes no mercado de alimento, fármaco e cosmético, como frutas e óleos vegetais. Isso sem falar no que ainda não foi estudado. Apenas 5% do potencial farmacológico da flora amazônica é do conhecimento dos cientistas. O Instituto Nacional de Pesquisas da Amazôn ia (INPA) estima que 788 espécies de sementes da região têm interesse econômico, mas apenas metade delas foi estudada. É também o modelo dos povos que consideram que desenvolvimento é possuir exatamente o que já possuem: água limpa e floresta protegida. Chico Mendes e Irmã Dorothy são vítimas da tentativa de se impor o modelo predatório de desenvolvimento na Amazônia.
Fonte: Revista Galileu